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PARABÉNS

C umpro anos mas não sei quantos. Os da cronologia estão contados, não está aí o problema. É o não saber se aparento mais ou menos, sendo dias que mais, outros muito menos. Não estaria mal que o corpo acompanhasse, mas não, e é esse o constrangimento e não é de pequena importância. Desarmoniza o gosto de viver, que o tenho, com tantas variações comezinhas de uns dias melhor e outros que podiam ser. Em todo o caso gosto mais de antecipar a perspectiva panorâmica de uma agradável paisagem de futuro do que andar a afastar das costas as brumas do que já foi. Amanhã começa um novo ciclo até à próxima comemoração, e parece ser óbvio que se apresenta todo um cardápio de possibilidades de que acabe por voltar,daqui a um ano, a sentir rigorosamente o mesmo  com a agravante de  o corpo ainda estar mais distante de uma relação a dois que tende a piorar irrevogavelmente.

O RESGATE

As balas traçavam uma ponte aérea sobre os telhados das casas, numa margem para a outra da rua vazia pelas razões de haver tiros com ricochete para o sentido contrário e perigosos. Mantinha-se operacional – operacional? – um posto militar, no início da rua, do lado nascente. Não se sabe porque não havia outro no lado poente, não fazia sentido. Provável escassez de meios humanos, tinha morrido muita gente, falta de recursos. A colónia foi entregue com hastear oficial da bandeira na capital, trocaram-na por uma nova, a nossa é muito mais bonita. Encenou-se uma passagem pomposa de testemunho, com apertos de mão e discursos. Agora a guerra ficou toda para eles, caseira. No posto militar daquela rua duma cidade em África que tinha o nome de uma cidade de Portugal, esperava-se pela evacuação, os militares não saiam de dentro do abrigo, era muito azar acabar a guerra e ser-se atingido depois disso. Como se contaria aos vizinhos, caso se sobrevivesse? Soava a anedota, não f

SUSPIROS

Este país tem mais leis do que as necessárias, que são propositadamente entendidas e usadas como arbitrariedades pelos amigos dos amigos que têm os poderes na mão. É um país cuja riqueza da língua – normalizada ridiculamente nalguns casos – aceita toda e mais alguma interpretação dessas leis, como convêm, não como devia convir ao colectivo. O labirinto é tão denso, sombroso, que qualquer cidadão incauto porque desconhece a lei a que é obrigado conhecer, e sem imunidade sonante a apoiar-lhe o traseiro, asfixia em poucos minutos nos códigos e regimentos e processos e adendas e o que seja. São os artigos que revogam outros, não interessa; os decretos que subsituem outros que entretanto se mantêm transitoriamente valendo ambos, e vão ficando ambos, até o sempre; são as alíneas que corrigem os pontos, que acrescentam e  subtraem os pontos e vírgulas…. Tudo é possível, acontece, é justificado com a maior das seriedades em conferências de imprensa, nos almoços e jantare

JUNHO ENQUANTO HOUVER

Entra junho, das cerejas, das festas dos santos e dos pagãos, das celebrações populares. Entra o tempo das desinquietações, a puxar à rua, a espanar o pó das cabeças, na vontade de festejar o descanso das noites prolongadas e encarvoadas que se arrastaram pelos meses invernosos que agora acabam. Entra a festa ca sa dentro, portas fora. Antes saltavam-se fogueiras, agora baila-se com rapazes e raparigas de outras latitudes, é tudo igual. Alimentam-se sonhos nos namoricos dos bailaricos de rua, arriscam-se malandrices – que vale o atrevimento - elas estão mais verdejantes, eles mais espigados, ambos entusiasmados. A natureza inteira renova votos, escolhe um vestido de noiva vistoso, eternamente sem mácula, escolhe o branco. Os noivos, uns a custo, outros animadíssimos com a oportunidade de dizerem sim num altar de talhas douradas com padres com rigor, paramentados. Segue-se um percurso de glória e fama efémeras em carros antigos de colecionador, pelas ruas antigas

A MÁQUINA DE TECLAR PENSAMENTOS

O colectivo vai a banhos, de fresquinho, a representar o Portugal nas terras dos comerciantes, a longínqua Holanda.

ONTEM - FOLHETIM 1

As crianças passam os dias na rua esticando o limite em que o chamamento saloio das criadas para o jantar, se desenvencilha do bruá dos putos no pátio e é ouvido, com desalento e ombros descaídos por se encerrar a jornada das brincadeiras. A rua é uma enorme casa sem telhado nem paredes, é um lar porque é íntimo e seguro, os miúdos conhecem-lhe os cantos e as esquinas, sentem-se bem. A casa propriamente dita aprisiona, com pais e avós e tias solteironas, encalhadas, todos entram, saem, andam o dia de cenhos franzidos, atarefados de quê? As criadas vieram da terra - os miúdos não entendem o que é isso de vir da terra - são os únicos adultos, ou quase, divertidos que não andam franzidos, sorriem tão genuinamente como as crianças e algumas passam o dia a cantar modas suas, umas alegres outras menos. Elas são também divertidas porque se deixam-se afagar, fingem que repelem com um não a dizer sim, que aceitam. Passa-se a palavra, disputa-se a criada de cada um, os primeiros pass

POESIA SEM PALAVRAS

Em dias como hoje, Não há nada para dizer. É a poesia sem palavras. E há quem diga da poesia, Que em dias como hoje Está a mais com palavras. Com um dia assim concordo, São redundantes, ambas. Só de sentir o calor na pele, pleno-me. E todo o meu reservatório de prazer, O intelectual e o do corpo Basta-se com o calor, sem poesia nem palavras, A súmula das duas.