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Mensagens

MORRE-SE ONDE TEM DE SE MORRER

Assistiu-se a uma morte, hoje, de manhã, quando ainda era demasiado cedo para acontecimentos deste impacto. Faziam os dois o que pensavam que era bom, uma caminhada com exercícios aleatórios nos aparelhos de exercícios normalizados, para todos - jovens e velhos - que salpicam os jardins e parques das localidades que ainda têm gente (já foram observados aparelhos destes em locais completamente desérticos). Ele tinha insuficiência cardíaca e sabia, mas não sabia que não podia puxar os limites quando já não se tem limites. No centro de saúde e na televisão diziam que o exercício dava vida e ele acreditou. Faltou-lhe bom senso como a quem lhe disse que fazer exercício era bom, é normal faltar o bom senso às pessoas. Caiu fulminado no chão do parque infantil e a mulher esteve meia hora a olhar para ele, a falar com ele, em negação por ele não lhe responder, até achar que era tempo para chamar a ambulância. Achou erradamente e já completamente fora do tempo. Quem

O MEU SANTO ANTÓNIO É MELHOR DO QUE O TEU

Ó meu rico Santo António, tuga do meu coração, faz-me lá um milagrinho, um amor de supetão. Para os Lisboetas que levam o amor pela sua cidade como coisa séria, aproximam-se os melhores dias do ano. As festas em honra do seu santo padroeiro, santo repartido, mas mais nosso do que dos outros, os italianos. É o momento do ano em que descontraímos corpo e alma, às voltas com o caracol, a sardinha importada, o tinto a tingir os beiços. É a época em que suportamos todas as cores e feitios, e até um arbusto desinteressante (é uma erva de aroma e dá pelo caricato nome de Ocimum minimum ) que para dar cheiro é preciso deitar-lhe a mão, ganha uma outra vida e se torna um protagonista efémero, com um cravo de papel espetado e uma quadra popular dedicada ao festejO. As tristezas e as vinganças da vida pagam-se depois, quando baixa a adrenalina, que agora anuncia-se a folia para o mês inteiro. As pequenas picardias ficam para a noite do desfile das marchas

LISBOA, A OUTRORA BELA

Observo com nostalgia e desalento as transformações da cidade.  Uma das caturrices dos que contam os anos riscados no calendário sempre afixado na parede, para terem presente os estragos do tempo, é recuperar o que dizem ser o seu tempo, a fatia de passado que consumiram. É uma casmurrice, mas aos velhos perdoa-se, e se chegarmos a isso vamos gostar de ter perdão. Submerso nesta onda de pensamentos em círculo, sentado numa esplanada sem gabarito, depois de desatendido por não ser turista – sabe lá o empregado de Minas Gerais se não sou um turista de weekend na minha própria terra! - congemino com azedume sobre o quotidiano da cidade, apesar dos meus olhos continuarem apalermadamente apaixonados por ela. Esta Lisboa que a dada altura e porque somos daqui, fizemos nossa, transfigurou-se num relampejo. Num momento a viver ao ritmo de uma aldeia grande, no momento seguinte a ser invadida por uma turba e a ter que se adaptar, mesmo que mal. A cidade desleixo

ABRIL CANSA-ME

É sempre assim! No princípio é só magnetismo, delícias de mil e uma noites, a fruição de todos os instantes, mas à medida que viram as folhas dos seus dias contados, vão ficando enfadonhos, não chegam ao fim, nem os podemos ver, os dias do mês. Este ano não vou comemorar Abril, viro-me para outros. Os outros andam meio aborrecidos comigo – não os mimo convenientemente, nem um piropo – e aceito as suas razões. Abril caiu-me sempre bem, mas o clima tem mudado muito, e nos últimos anos tem sido um mês de chuvas inesperadas, bruscas mudanças de temperatura, uma grande instabilidade que se reflecte nas pessoas. Optimistas que sejamos, um clima débil de carácter, erode o alento, baixa a guarda, não se sabe o que vestir. Nesse respeito deixámos de contar com Abril, que se tornou volúvel, dúbio, pouco fiável. Há outros meses que não me lembro habitualmente deles e merecem um olhar novo. Por exemplo Maio. Antes via-o como a passagem feita a correr para o Verão, logo al

FOMOS OS PERCURSORES DO TURISMO EM LISBOA

Nem um “ai” num boletim municipal, uma referência do Turismo de Lisboa, nada! Fomos a primeira start-up, ainda o nome não existia, nem se sabia o que era (nem hoje). Os comerciantes de Lisboa tinham uma ideia distante do idioma espanhol, eram os caramelos e pouco mais; meia-dúzia tinha umas luzes esbatidas do significado de quatro ou cinco palavras em francês, porque tinham familiares nos bidonville à volta de Paris; o Inglês falavam os bárbaros. Não se tinha visto a cara a um chinês, a um russo, a um angolano com dinheiro. A Avenida da Liberdade tinha consultórios médicos e cinemas. Em Alfama o fado escorria pelas paredes dos botequins de copo “três” e atiravam-se pelas janelas os restos das couves e das sardinhas do almoço. As conservas andavam pelas ruas da amargura e nem nós as comprávamos – por muito bonitas que fossem as embalagens. Só havia dois tipos de alojamento temporário para pessoas em trânsito: pensões com camas de casal partilhadas com per

O ABRAÇO

O universo desabou numa sala anónima de um aeroporto e eu protejo com um abraço a minha família: a minha mulher, o meu filho. Protejo-os para a vida. Não percebo o que está a acontecer, uso-me do instinto, a minha lucidez.  Não dou ao meu filho tempo para chorar, e é disso mesmo que o protejo, para que não chore. Se o fizer, ficará para sempre impedido de ser ingénuo, perde a sua naturalidade, tão pequeno ainda, impedido de futuro numa sala anónima salpicada de corpo s inertes à sua volta, a pior vilania que a vida lhe pode oferecer. Vou trazê-lo para a rua, disfarçando como se nada fosse, de mão dada os três, e quando chegarmos a um ar que se respire, vamos comer um doce, vou dar-lhe um brinquedo que goste sem olhar a custos, beijarei a minha linda esposa, e continuaremos a viver, com novos medos, mas atentos a que ele não chore nunca. Chorar é o que eles querem ver de nós, que sejamos tristes. Mas com o meu filho, não. Enquanto nos beijarmos e nos abraçarmos com esta

ANOTAÇÕES SOBRE O AMOR I

Perdemos um amor, algures, nos fios que tecem a vida. Um grande amor ou a sua possibilidade. Num desencontro de minutos, à porta de um bar, numa paragem do eléctrico, na nossa cabeça, num equívoco da nossa cabeça, numa ilusão enganosa, numa desilusão anunciada. Há amores que ficam amarrados a um cais, fazem-se estátua. Encontramos, perdemos, voltamos a encontrar, perdemos uma vez mais. O mundo rodopia sem misericórdias nem sentimentalismos, não tem alma mas é a casa da nossa. Não encontramos quem julgamos que queríamos, não sabemos quem queremos encontrar, perdemos quem não sabíamos que queríamos e afinal estava ali, à distância de uma mão aberta, fácil de acariciar, que se esfumou num nada. Mal decididos, desassossegados. “Gira que gira/E torna a girar/A vida que querias/Não te posso dar.”