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PROCISSÃO

As festas da nossa aldeia, estejam elas habitadas por fantasmas que há sua maneira também comemoram, ou recebam um milhão de festejadores, são as festas da nossa aldeia, as melhores, o nosso orgulho. O marco geodésico que sinaliza a comunidade exactamente geográfica onde nascemos, ou onde queríamos haver nascido e da qual nos fazemos adoptar como filhos da terra - demos as voltas que dermos por esse mundo fora – é a guardiã extremosa da nossa essência, que se chama folego: um sopro-chama, que nos soprou pela primeira vez, enviando-nos para as rotas a cumprir na vida. Todos os anos, com hora marcada abraçam-se de costados os emigrados, rapa-se o fundo às conversas para pôr em dia, faz-se a procissão da santa, come-se e bebe-se, e a música pirosa e brejeira, ouve-se em volume estúpido, saída aos gorgorejos dos auto-falantes pendurados nos candeeiros de rua. Pela manhã quando o tempo ainda está propício a louvarmos o Senhor, sai a procissão finda a missa solene celebrada

O OLHO DA TIA FLORINDA

A minha tia tinha um olho de vidro e à noite afogava-o, maneira de dizer,num copo de água em cima do psiché . A água não era gaseificada, mas constituíam-se pequeníssimas e inúmeras bolhas à sua volta. A modos que um olho numa   flute   de champanhe. Para quem está habituado a dentaduras a boiar, esta foi uma grande ideia da minha tia. Sendo uma mulher com o sentido prático da vida, e como não se está a ver ninguém dormir com um fechado e outro aberto,    não tendo outros inquilinos, arrendou o aquário ao vítreo. Foi o meu avô que lhe ofereceu o olho, mais para ganhar as graças da sogra e ficar oficializado o namoro com a minha avó, sua irmã, do que por atenções à zarolha. Foi no entanto um gesto de simpatia. Um dia já sem memória que a bicheza das campas    as comeram ao mesmo tempo que as carnes, chegou a casa delas com um embrulho de papel pardo na mão e disse alheadamente:  « toma, a vê se encaixa». A minha tia desembrulhou-o na expectativa das tes

AS FESTAS DE LISBOA

                     Ilustração Paulo Robalo Esta cidade tem um santo a meias. Melhor metade que nenhum - é meio abençoada - o que não está nada mal dada a carência de protecções divinas. Os  académicos e canónicos disputam a naturalidade do santo, afogando-se em investigações e escrita de teses, gastam uma vida isto. “Nasceu aqui”, ”É mais dali do que daqui”, “Não é italiano”, ”Ai isso é que é!”, o que transforma a questão num grande enjoo e tédio. Não sabem eles que os santos não reivindicam certidões de nascimento, e estão no mundo para serem do mundo, distanciados de clubismos geográficos. O nosso meio santo - reza a lenda acabada de inventar - gostava da folia e não resistia a um belo bailarico, apesar da sotaina dificultar a soltura de movimentos. Era igualmente dado aos prazeres da comida e do refrigério, tinha portanto uma barriga generosamente saliente, sinal de bonomia. Como a Regra o impedia – e ele era dos mais cumpridores – de se ligar em matrimónios, fe

ANIVERSÁRIO

Tenho a noção do momento em que deixei de ser imortal, e disfarcei como se não fosse comigo. Olhei para o lado e não dei importância a esse contratempo: orgulho é inconsciência. Tratei do assunto com se fosse uma indisposição temporária, e segui a minha vida, mas as ressacas nunca mais foram as mesmas. Desde aí tenho vindo a aguentar os insucessos físicos, alguns inconseguimentos que não nos deixam confortáveis, falhas de memória também, e faço como se não fosse comigo. Assobio para o lado, persistente na teimosia do inevitável, ou se calhar agindo como um idiota chapado. Inevitável é uma palavra definitiva, sem contraditório. Irritam-me palavras assim! Faz algum sentido existirem palavras que não permitem uma conversa civilizada? A apresentação dos argumentos, a possibilidade de um acordo, no meio caminho do que ambas as partes queriam no início das negociações? Vais começar e já está colocado – no ponto de partida – o ponto do final? O meu corpo deixou de ser belo se é qu

O estranho estrangeiro

A música é uma grande abstracção, tão enorme que transforma os infernos em locais aceitáveis. Os sons e as ausências calculadas deles, esticam o fruir dos homens ao limite, e é pousados nessa linha invisível, que descobrem finalmente o infinito. Ele é um desabrigado cheio de classe, sim se essa designação pode ser atribuível à classe dos sem-abrigo, já que se tem que pôr rótulos em tudo. Aparece materializado do nada, com aparecimentos referenciados em vários locais ao mesmo tempo. Pode ser um demiurgo, prestidigitador, que tenha descoberto a arte de viajar no tempo, ou simplesmente um outro ser, o que complica muito as coisas do entendimento. Numa tentativa de fazer a sua descrição, dir-se-ía um indivíduo longilíneo, a apontar para o alto, aparentando uma grande leveza: tem movimentos lentos, flutuantes, executados em gravidade zero, não denotando esforço nem respiração. Sendo certo que a sua roupa não está actualizada, visíveis os sinais de abuso, não se pode dizer que a

FESTAS NA MOITA

Nas ruas, grossas traves de madeira protegem as bestas das pessoas . Delimitam os espectadores dos “artistas”. Dá-se início à representação de um espectáculo antigo, uma tradição, palavra ofendida. Às 24h00 em ponto largam-se as bestas na Avenida Teófilo de Braga, para gáudio e excitação popular. Esperam-se cornadas boas, piruetas e volteios, e algum sangue, o suficiente para colorir o ambiente. As pessoas gostam de ser abalroadas! Depois dos fados nas escadarias da Câmara Municipal e da arruada com a charanga musical, são às centenas os homens a correr à frente dos touros, uns a tentar escapar, outros a afrontar, a maioria só a ver, que de ver se enche o olho e leva-se experiência para contar aos amigos. A largada tem o grande desfecho na praça de touros, portas abertas, a arena livre por onde entram os animais e os homens, cumprindo estes remates finais de faenas, saídas em ombros ou nas mãos dos que transportam os feridos e os ébrios para a enfermaria. Animado pelo p

JOÃO

Uma noite fria e escura, tão escura que nem acreditamos nela como noite. Em condições normais as noites têm as luzes das estrelas acesas, penduradas na teia de palco do céu, mesmo que encobertas por mantos de nuvens, esta não está posta assim. Sob os auspícios desconfortáveis desse epifenómeno, debaixo de um viaduto da cidade, as paredes de betão estão forradas por azulejos com desenhos de medusas, em azul. Na rua que cruza essa ponte suspensa, uma marisqueira conhecida está banhada de luz e gente, e talvez por isso, por ser reconhecida, do lado de cá os carros com assinatura esperam que os ocupantes os venham buscar depois de refeições que não são baratas. Regressam mais tarde ou mais cedo, animados pela qualidade dos vinhos. O João toma pouco conta dos carros. O que faz ali, nesse sítio, é estar estacionado como os carros. Não se dá por ele, não se vai dar falta dele. Mendiga euro s no enquadramento das medusas, em que nunca reparou. É um homem falho de história, há h