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Mensagens

Um passeio de barco

Desnovelámos uma conversa suave, sobre tudo e sobre nada, falamos das coisas mais complexas e das maiores futilidades, flutuando suavemente com essa partilha, num pequeno barco de pesca, pairando em recantos de rio, molduras para pinturas naturalistas. Como em todas as coisas que são importantes, na importância que damos a episódios das nossas vidas, o tempo parou, suspendeu-se para nós, curioso a querer ouvir a nossa conversa. De quando em vez, a interromper o silêncio majestático de um rio tranquilo, o ruído das grandes carpas em trabalhos de parto (desova). A riscar o céu que estava posto de azul para nós, corvos marinhos negros, flechas voadoras, garças reais e outras, de longas asas, ganhando altura em movimentos longos de impulso, águias pesqueiras, seres de nobreza respeitosa. Os recortes das curvas do rio, a derramarem reflexos dos verdes das árvores cerradas, sobre a superfície da água, a recebê-los, misturando-os de seguida com as cores próprias e suas que as águas têm. E...

O Caçador que é só de nome

  A o lado de um grande homem, um que o seja, está uma grande mulher, que seja só mulher. E ao lado desta estará este. Parece um salmo canónico, mas não é. Não tem nada de divino, tem tudo de humano. Falamos da harmonia das coisas. Assim devia andar o mundo, aos pares, dois fazem uma maior do que um só. É a filosofia dos axiomas simples, que podem levar a teses de mérito. Esta regra devia cumprir-se em tudo: na vida das famílias, na vida das labutas, na vida dos prazeres transitórios. Sendo este o panorama, desta conversa enviesada que não se entende, damos de caras com a porta do restaurante O Caçador. Entrados, devidamente instalados, recuperado o folego da catadupa de palavras para chegar a este ponto, podemos, agora relaxados, desfrutar de um bom repasto (o vinho é honesto). Bochechas, Queixadas, Lagartos, não se trata de um manual de anatomia veterinária, nem o cabrito, nem o borrego. É de comida que se fala e juntamente com outras estrelas do menu variado, fazem a casa,...

O milagre da transformação das mimosas em medronhos

É um quadro bucólico, não fosse esta palavra fora da moda, uma palavra do romantismo, no tempo em que uma paisagem campestre era bucólica e sentimental. Agora, não há paisagens bucólicas no campo, que deixou de ser  espaço de fruição e é cada vez menos espaço de trabalho. Agora, vai-se ao campo para fazer caminhadas esgotantes preocupados em contar os passos e medir constantemente a frequência cardíaca e percentagens de oxigénio. Terminadas e ofegantes, orgulhosos dos níveis e desníveis acumulados nas leituras GPS e guardados nos mapas que logo à noite se vão publicar nas redes sociais para envaidecimento próprio e pingar pirralha aos amigos, descalçam-se as sapatilhas, entra-se no carro e volta-se ao ponto de origem, a cidade. Os que foram, foram ver, não olharam. Os campos já pouco se trabalham, deixaram-se ao abandono das giestas e dos matagais. As florestas já não são locais de saúde física e mental, viveiros de vida, poupanças de futuro para os filhos e os netos, são locais ca...

AS TOUPEIRAS

Havendo ou não um túnel, curto ou comprido, onde a luz é escassa, quase trevas, e sem que se veja, se sente apenas que se caminha numa direcção que não se sabe, até que finalmente, depois de passarem todos os filmes e projecções dos anos que foram vividos, uma pequena impressão de luz, tão débil, que mal se pode acreditar, pode ser uma falha da visão, um erro, se avista a uma distância que não se calcula, se perto, se longe. Havendo o desfilar por ordem de um caos que se instala sem regra nem ordem, dos acontecimentos, episódios, histórias boas e más e indiferentes, datas comemorativas, datas de pesar, datas formais, datas por obrigação, relações e quebras de relações, laços fortes e que se desfizeram num soprar de brisa fraca, rostos, definidos, indefinidos, belos, alegres, sofridos, e as outras coisas todas, tantas ou mais talvez, as paisagens, as linhas de horizonte, o Ceu, o Mar, a Terra, os seres diversos e imprescindíveis. Havendo tudo isso e tudo o que se esqueceu, e que foi...

As cidades e a as serras. Revisitação quierosiana

  Neste tédio de uma Tormes adormecida, adio e não consegui ainda conhecer todas, mas gostava, e prometo que não vou fazer uma lista das melhores e das menos melhores, porque desconfio que vou gostar de todas. Falo de uma, e logo outra me seduz, indecentemente. Não tenho para onde virar a atenção, umas atrás de outras, a reclamarem atenção. E têm razão.  Fosse eu um Adónis, que nunca nem em intenções, e ficaria apimentado pela picardia, de umas a competir com outras, por um olhar meu e a conjugação de meia dúzia de palavras escritas com honestidade.  Mas não, elas competem por atenção e têm a sua razão certa, porque a bem ver, quase todas as aldeias do nosso Concelho são ´vaidosas, não fossem elas ainda e algumas, sofredoras crónicas de uma ciática dolorosíssima de continuarem dobradas a subserviências de  passados coitadinhos, que já passaram -tantos tempos,  mas nunca mais deixa de parecer que ainda foi ontem – e as suas gentes não terem ainda dado por i...

O BARCO VAI DE SAÍDA

  O barco vai de saida, ai que pagode, Que vida boa é a de Lisboa… E vai de novo a barcarola, navegando ondas redondas, suaves, e musicais, transportando-nos, embalados e num suave prazer, na Arca da Esperança. A noite pôs-se linda porque sabia que ia haver festa. Um longo tapete vermelho que a cidade estendeu, a caminho do rio, para uma confraternização histórica: o Aniversário do Jamaica e do Tokyo. Por uma causa nobre e inclusiva, jovens e outros um bocadinho menos - seremos todos jovens os que sorrimos descaradamente -  juntaram-se a brindar, transportados por memórias do tempo - muitos e que bonito foi - agora juntos com os seus filhos, numa cumplicidade de festa e alegria. É verdade que a boa música é intemporal, mas saboreia-se mais em comunhão, à roda de um grupo e foi o que ontem aconteceu. O aniversário do Jamaica e do Tokyo. Os menos jovens, mas não menos actuais, reviram rostos conhecidos com as roupagens do tempo presente que agora veste as feiçõ...

O Aniversário.

Talvez o Fernando, construtor de pequenos barcos que só navegaram na sua imaginação, protagonista da história que a seguir se conta nesse catálogo comemorativo, tenha conhecido Fernando Pereira, que um dia, ou por razões de clarividência empresarial ou esmagado por impulsos do coração, se tornou sócio fundador do Jamaica, no balancear dos tempos de grandes mudanças num país habitado por um povo melancólico. Foi há 53 anos. Trepidantes anos de aberturas e novas liberdades, quando a “noite” de uma Lisboa abafada e muito provinciana, estrepitou em fogos de artifício, que encheu de luz e diversão, um Bairro Alto e um Cais do Sodré bafientos e antigos. Bares de encontros fortuitos e navalha de ponta em mola, escancararam a partir daí as portas a uma nova juventude burguesa, a aprender a ser citadina, cosmopolita, dançando até às tantas, sonoridades que vinham de fora: crioulas, tropicais, caribenhas, quentes. De repente, as esquinas aguçadas, obscuras de luminosidades sombrias onde as put...