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ENSAIANDO BALANÇOS

Ao dia sexagésimo e uns tantos acrescentados, dou por terminado o que tenho a dizer sobre a vida que observo do prédio em frente. Terá muito mais moradores dos que conheci e sobre os quais falei. Ou não aparecem à janela, ou aparecem em tempos diferentes dos meus, ou são sombras que circulam no interior dos apartamentos que não se conseguem ver nem distinguir, porque não são tocados pela luz. Captei o homem desistido que fuma, a menina que brinca e faz-se pessoa, com as figuras em cartolinas coloridas dos animais coladas na sua janela, o homem que janta sozinho à luz de velas na companhia de um lugar vago, do gato acrobata e meditabundo e finalmente de um pássaro muito especial. Ficamos sempre com uma ideia das coisas, nada mais do que isso. Neste prédio já viveram outras pessoas, reais, e conheci algumas. Relacionei-me com umas tantas, num passado, quando entrei no círculo da existência e comecei a caminhar. Pessoas do meu tempo, seja ele qual tenha sido ou venha ainda a ser.

DO PARAPEITO DA MINHA JANELA VEJO UM PRÉDIO - O GATO

O gato é um ser muito acrobático. Acrobático e misterioso. Ligam-se muitas vezes os gatos a coisas do além, sensitivas. Os gatos e as pessoas cultas são inseparáveis como o chocolate e o vinho tinto. Os gatos são independentes, não atendem ao chamamento, como os cães, e raramente lambem os donos. São extremamente asseados. Os gatos passam longas temporadas do dia imóveis. Até chegam a dar a sensação que estão desligados, que não estão cá. Na única visão que agora tenho do mundo, fora de mim, um gato habita no segundo andar presumo que esquerdo (nunca fui bom a adivinhar o lado certo dos andares dos prédios) do edifício em frente no qual me debruço todos os dias, desde a minha janela, já que não tenho opções diferentes, senão continuar com todo o meu empenho a explorar o conhecimento desse prédio, através da minha paciente observação diária. Este gato em particular, listrado em amarelo e branco, passa horas esquecidas, fazendo de esfinge egípcia, não se sabe se a dormir se num p

DO PARAPEITO DA MINHA JANELA VEJO UM PRÉDIO - HOMEM A JANTAR

Há um homem que todos os dias janta sozinho. Acende duas velas na mesa e come pausadamente como se estivesse a rezar. Talvez tenha um pequeno candeeiro aceso, que não se vê, uma luz difusa, amarelenta, ilumina vagamente uma das paredes da sua sala de jantar, onde se consegue perceber uma pintura com uma moldura dourada, que parece ser uma paisagem e dá sinais de ser antiga. É um homem de meia-idade e pela forma dos seus gestos percebe-se que a rotina de comer sozinho está instalada há muito na sua vida. Não parece ter muito prazer na comida. Pode estar boa, não se sabe, e o homem ser pouco expressivo ou não ser apreciador de comida. Come para continuar a viver, nada mais. Há momentos em que ele olha como se olhasse para alguém que não está agora ali, mas que já ocupou o lugar vazio que se encontra à sua frente no outro lado da mesa. Pela forma em que o faz não se consegue perceber se olha com saudade, ou se simplesmente olha, mantendo uma conversa interior que nunca v

DO PARAPEITO DA MINHA JANELA VEJO UM PRÉDIO - A MENINA

Numa janela do prédio em frente, a menina brinca no seu mundo. Sem medos, os poucos são sustos. Episódios espontâneos, vão e vêm, esquecidos rapidamente. A sua ingenuidade da vida é a sua melhor protecção. Brinca com as suas coisas, fala com a sua companheira invisível, e é feliz. A mãe (deve ser a mãe), recorta em cartolinas coloridas figuras de animais, e cola-as na janela. Assim a menina ao olhar para esses magníficos animais das selvas e savanas africanas, sobre o fundo azul do céu que se projecta do outro lado da janela, sonha mais. É um teatrinho das duas, a sua forma de cumplicidade. De vez em quando aproxima-se da janela para dizer adeus. Não faz perguntas, não acha estranho que na rua não haja sinais de gente nem carros. Para ela tudo continua bonito, e também tudo misterioso, é assim a infância. Há tudo a descobrir para se tornar familiar. São assim as crianças, em tudo põem beleza. Basta distanciar-se um tudo nada da janela e deixo de a ver,

DO PARAPEITO DA MINHA JANELA, VEJO UM PRÉDIO - O HOMEM

O Homem que fuma desistidamente veste um pijama com uma cor esbatida, que já foi cor, perdeu o brilho, algodão muito usado. E tudo nele, a esta distância do que se pode ver, coincide no mesmo tom pálido de ausência de cor vivaz. O homem olha da sua janela aberta para a rua vazia e dá a sensação na falta de movimentos que denotem nele alguma energia vital, que foi posto nesta posição, a arejar, como se faz todos os dias de manhã quando nos levantamos e abrimos as janelas de casa e espanamos as almofadas da sala e as mantas do sofá. Está ali até que se acabe o cigarro, mal o leva à boca, consome-se lentamente em volutas de fumos verticais, praticamente esquecido nas mãos descaídas deste velho. Não sabemos se vem muitas vezes â janela cumprir esse hábito da observação do nada. Neste caso a distância da janela de sua casa, um terceiro andar e a rua onde passam menos eléctricos e pessoas poucas, é agora o seu abismo. E a tentação de mergulhar existe, está na sua cabeç

O MELRO

Nas janelas do prédio em frente assisto a movimentações de sombras, semi-obscuras, seres viventes. Um homem idoso, sempre com o mesmo pijama, fuma um cigarro, olhando de relance para a rua e volta rapidamente para uma zona sem luz em que o deixo de ver. Vê-se pouco esse homem, abeira-se pouco da janela. Tenho a sensação, talvez errada de que fuma desistidamente. Uma menina ainda muito menina, dá pulos e pulos no sofá branco da sala e consegue-se perceber isso melhor, em determinados momentos do dia quando o ângulo da deslocação do sol permite incidir a luz na janela. A mãe da menina, cola animais e flores recortados em cartolinas coloridas, na janela da sala, talvez para a menina imaginar que a paisagem, lá fora, é todos os dias diferente. Eu, que não sou a menina, imagino, e gosto. Um homem, janta todos os dias à luz de velas, sozinho, compenetradamente, não sabemos o que estará a pensar. Nunca vem à janela. Dá a sensação de ser um homem solitário, pela forma

PROCURA-SE FLOR SÉRIA PARA COMEMORAÇÃO

Procuro uma flor. Deverá ser de cor vermelha, que esteja de acordo com um relacionamento sério, que confie e aceite que vamos por aí dentro de poucos dias. Ela na lapela e eu lampeiro, orgulhosos e vaidosos, a anunciar que a primavera, o tempo do tempo que abre e despeja, se anuncia triunfante, independentemente das contrariedades. Não podendo sair e que ela não me encontre, invento uma, faço-a com as minhas próprias mãos e de seguida pinto-a da cor que lhe é devida. Então saímos juntos, a debruçarmo-nos na minha janela, e cantamos alto e bom som, aquela canção que conhecemos e nos deixa com uma lágrima no canto do olho. As comemorações brindam-se no coração, se não virmos ninguém nas ruas, não é motivo de preocupação: é porque estão como nós a festejarem a sua e a nossa liberdade.