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INDO EU, INDO EU...

De cá, para lá, é mais escuro. Ele não olha, portanto não vê. Não olha pela janela do carro a altíssima velocidade. Vai absorto, urdindo discursos, pouco mais faz do que discursos e nem isso: cola as partes que lhe enviam os assessores. A sua eficácia realiza-se num bom discurso, e nada mais, esgota-se nisso a função. São duzentos e cinquenta quilómetros de estrada boa, nelas fez-se fartura. No que escasseia, sempre a somar e a escassear mais e mais, são as árvores. Clareiras cada vez maiores, de ramos incinerados, a lembrar cruzes de cemitério. No chão amarelento, a secura, o anúncio de desertos. Poucos verdes restam, e dos novos, são eucaliptos. Não se aprende, não porque não se queira. Tudo é propositado, ou desleixo absoluto. Do mar à fronteira é um instante, a pagar portagens privadas, a pagar para se ir visitar o quase nada, ou então (a poder-se), a fugir de nós próprios: entrincheirados na apatia, nos embalos dos demagogos, fazedores de ricos discursos gongóricos,

A PALAVRA

Regularidade plana de terreno, pontuada escassamente por árvores, tão juntas entre si, que parecem proteger-se de algo, talvez do vazio   que as rodeia, a perder de vista. Arbustos rasteiros e poucos, ali nascidos nem por quê, nem para quê. Neste cansaço pontuado pelo vogar pairando lento de uma ave de rapina, a ajeitar pelo olhar acutilante o momento fatal, do golpe que há de praticar sem clemência, e no entanto nada de mal faz senão a sobrevivência do dia, aproximam-se ao longe, ou não tão longe mas dando essa sensação pela intermitência das ondulações de luz que emana da terra nestes dias de muito calor, duas figuras, dois homens, aparentemente, calcula-se que o sejam, não é ainda o tempo das almas penadas, que se passeiam em horas crepusculares e frias, esquivando-se de contactos. Existe uma estrada por onde eles vêm, estreita mas estrada. Passam viaturas aleatoriamente passando indo nas suas direcções pessoais, desconhecidas, que não poderão entrar na história. Qu

O CÍRCULO DOS DIAS

Os dias eram redondos e apesar de alternarem rodeando na luz e na escuridão, repetiam-se sempre iguais. Assim tudo continuaria inalterável não se desse o caso, um acaso talvez, de os homens e outros animais inteligentes terem dado conta e atenção ao facto de os dias serem assim, por vezes monótonos e previsíveis. E colocaram questões. A partir desse instante, tudo se alterou, tomando os dias nota de que andavam a ser observados. Não sendo por natureza desconfiados, envergonharam e num esforço de simpatia, fizeram-se elípticos, alongando-se, o que alterou a sua alternância sempre igual. Os observadores, críticos que são a tudo, ficaram com a ideia de que o tempo dos novos dias esticava, mas isso não era verdade: as horas, os minutos, os segundos, eram rigorosamente os mesmos. A vantagem dessa original configuração geométrica era só uma, mas fundamental: os dias deixaram de ser monótonos por andarem sem parar às voltas e voltas. Passaram a andar esticando-se, o qu

de novo GEOGRAFIAS

Copenhaga, Tóquio, Jamaica, Europa, Shangri-la. Enumeração aleatória de lugares e regiões na geografia do mundo, identificáveis com um dedo apontando o mapa  mundi , ou a fazer uma roleta russa num planisfério. Excepto o último, um paraíso utópico, só reconhecível em imaginação fértil. Na geografia de uma rua cabe todo o planeta. Dá-se-lhe a volta em dez minutos, sem sair dos fusos. Isabel percorre, num vaivém contínuo e incansável, nómada errante, essa pequena rua que junta todos os lugares. Quase ridícula. Resgata marinheiros em compasso de espera em terra alheia. Salva-os da monotonia do tempo que está em suspenso, antes de mais uma partida, sem terem para onde ir, já perderam há muito o coração. Oferece-se, não se faz poupada. No calor da refrega apressada, em lençóis de limpeza duvidosa, partilhados com outros ocupantes minúsculos residentes habituais, por vezes, uma centelha de calor atinge o outro, entremez na solidão dos afectos, ignição primordial. Nã

MÊS DE AGOSTO

Atropela-nos, com os seus joguinhos e perversidades inesperadas. Ficamos colados, à parede, ao chão, ao tecto. Magneticamente colados. O processo criativo mete os papéis para o fundo de desemprego. Em privado, a tentar recuperar todas as séries do netflix dos últimos anos, quando se odeia televisão,mas entrou a melancolia portas adentro para tomar conta do apartamento que não é aspirado há semanas. As desventuras comezinhas tomam conta do quotidiano. Escrever não vale nada, quando a vida no seu esplendor podre, nos atropela assim.

O SECRETÁRIO DE ESTADO

O secretário dormia, e até parece que ressonava um pouco, numa cadeira, espreguiçadeira. Numa pequena mesa ao seu lado, um copo com uma bebida que pode ser uma caipirinha. Porque não? O secretário passa “pelas brasas” e tem para além dos pés descalços, na areia, um livro que dá a sensação ser um romance, pousado, inerte, por abrir, no seu regaço adormecido. Enquanto ist o, num mundo que não é o seu, a classe que ele tutela, faz greve, já vez muitas, anda a fazer tantas. Ele não ouve esses ruídos incómodos, está na praia. As pequenas ondas do mar, apesar de pequenas e bonaçosas por ser verão, emitem ao darem o seu último suspiro na linha da areia, um ruido constante, muito relaxante, belo mesmo, e impede de se ouvir seja o que for. Muito menos se for um longínquo e meramente incomodativo esgar de gente imprópria, com interesses corporativos. Ah, as férias! Ausentamo-nos de tudo, carregamos baterias, a vida é madrasta o ano inteiro. O secretário balança agora

O SITIO DE MELIDES

Melides é frique, que bom, já há militantemente poucos. O hippie chique e a esquerda caviar são dois braços da mesma vibe mas não emitem aquele frisson de uma liberdade quase anárquica. Melides traça a linha da fronteira do litoral alentejano, a sul. A norte, veraneiam os intrinsecamente betos, os que juntam o tratamento blasé na forma como se dirigem às pessoas na pessoa do “você”, aos chinelos Vuitton, com os pés ligeiramente encardidos, às imensas pulseiras e colares sei lá, e que passam férias, em suas cottage de colmo e mirras, na Herdade das Herdades, a que já foi a mais do que tudo, que agora se desvanece em talhões cada vez mais pequenos, ainda assim caríssimos. Melides é frique mas vai deixar de o ser. Não é uma aldeia nem particularmente bonita, nem particularmente feia, nem tem (ainda) restaurantes particularmente dignos de estrelato. Mas tem restaurantes estrambóticos, inesperados, dados a excentricidades decorativas. Em vez de uma estátua de um ilustre co