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O HOMEM QUE QUERIA VER O MAR - LÁ, NO SÍTIO DE CASCAIS

II Foi assim que o Tertuliano , Fez o baptismo de uma carreira trágico-marítima, a sua história pessoal, numa pequena embarcação colorida no entanto tímida, com o nome “ meu coração” pintado na proa, escrito por mãos analfabetas, que copiaram tremidamente a grafia escrita numa folha de papel, por alguém com uma grafia pouco convincente, tremida igualmente. Os barcos são um nome feminino que se diz no masculino impropriamente. Correctamente ditos deviam dizer-se barcas.   E estas, nem todas, mas quase todas, são femininas:   não são os barcos da guerra, porque são masculinos, cinzentos, feios, transportam a morte por passageira e como tal não têm nenhuma propriedade feminina.  O “meu coração ” é uma barca angulosa, esguia, e dadas as circunstâncias, dentro da sua humildade de barco de pobre, comedidamente sensual. Os marinheiros que a embarcam não têm pensamentos desta dimensão, mas haverá com certeza alguém, mais fleumático, com pachorra para abstrações, senta

HÁ NOTÍCIA DE QUE A GUERRA ACABOU

Os homens, exaustos, terminaram todas as guerras num dia esplêndido de sol, dia que estava a pedir um piquenique no campo. Havia ainda flores, cores. E abelhas.  Não se tendo dado conta da sua ausência, o ruído foi de tal ordem com o passar ininterrupto dos aviões e dos mísseis balísticos - que nunca se ouviria o chilrear - agora percebia-se claramente a sua presença no céu, e pousando nas árvores.  Os pássaros. Os homens, em acordo, depuseram as armas, atiraram os pesados capacetes para longe da vista, abriram os botões dos dólmens, descalçaram-se deixando ver os dedos a saírem de meias rotas. Acenaram e assobiaram alto para todos os que estavam no outro lado. Estes acenaram e assobiaram igualmente. Em todo o sítio e em todas as guerras estes procedimentos foram seguidos para os que estavam nos lados opostos, com respostas muitos positivas. Animadoras. Depois de reunidos todos os homens, sobrantes das longas guerras em curso, fossem elas pequenas ou grande

O HOMEM QUE QUERIA VER O MAR - O DIA

Quando um homem se deita com muita coisa por pensar, acrescenta novos pensamentos aos que estão em carteira, chega a atafulhar-se, escasseando tempo para os pensar a todos, devidamente. Tertuliano esgotou as horas da sua primeira noite no bairro à margem da cidade, fazendo a contabilidade dos pensamentos, pondo uns na folha do deve, outros na do haver, os antigos, os novos, outros em trânsitos contabilísticos, tudo isto feito rigorosamente, porque nas folhas dos guarda-livros, faltar um tostão ou mil reis é de igual gravidade. Tertuliano é um homem meticuloso, não é picuinhas, é arrumado de cabeça e propósitos. Esse prestar de contas, chame-se assim, porque Tertuliano despediu-se do papel que lhe deram para representar e escolheu um novo. Ninguém nas altas esferas celestes estava a contar com isso. Veio com a missão de ser pastor de rebanhos, agora quer ser marinheiro. Uma decisão pessoal desse calibre, em rebeldia, deixa poeiras que devem ser varridas. Foi o que fez nessa

O HOMEM QUE QUERIA VER O MAR - O PRIMO JACQUES E O BAIRRO CHINÊS

  Um bairro de lata não tem planos de ordenamento camarários. É um não-sítio. Terra pária. Não tem ruas direitas projectadas a esquadria num gabinete; a luz é a do petróleo e nos casos mais extremos, a   do coto de vela; a água, a que se bebe nas fontes; o esgoto é a céu aberto,   projectam-se lixos pelas aberturas das janelas quase janelas, pelas portas quase portas, quase, porque para o serem completas, faltam as molduras de madeira, os vidros, uma fechadura e a chave das portas. No bairro da lata cada morador é o seu próprio arquitecto, um construtor civil. Mas também há entreajuda. Os pobres dão aos outros pobres o que lhes falta, dão. O bairro chinês está na periferia da cidade, oriental, igual a outros, sem predicados, só defeitos. Não havendo igreja edificada, uma taberna assinala o epicentro. Apresenta-se no ponto exactamente topográfico de intersecção das principais vias do bairro. Sinuosas e tortas, por sinal. Não há topógrafo nem agrimensor neste bairro,

O HOMEM QUE QUERIA VER O MAR - O HIDROAVIÃO DA PAN AM

     A ligação transatlântica América do Norte-Europa, quase à velocidade de um pestanejo. São tempos de guerra, a Companhia interrompeu a ligação para o Reino Unido. Decidiu-se por Lisboa, por ser neutra, de boas relações com todos, o novo ponto  de chegada ao velho continente. Desembarcados do hidroavião que amara no mar da palha, seguem depois para os seus destinos finais. Construiu-se um aeroporto na Portela, em terra firme, onde outros  aviões que não têm uma grande autonomia, transportam os passageiros das américas para as outras cidades europeias. No dia de Deus, dos grandes milagres, e de descanso dos mortais, dia preferido da semana, o grande avião amara no Tejo, e os basbaques , muitos, amontoam-se nas margens do rio para assistir de queixo caído, espantados, exactamente com a mesma reacção dos indígenas no dia longínquo em que homens brancos vindos em grandes naves marítimas, chegaram a praias desconhecidas para os conquistar. Pouco mudou nesse intervalo d