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Mensagens

TELEVISÃO

Neste exactíssimo momento dou por encerrado o dia. Está na casualidade o vir a acontecer um grande desprendimento de responsabilidades, por tudo o que aconteceu nas últimas vinte e quatro horas. Passado passou, não se pensa mais nisso. Amanhã, se despertar para aí virado, e o banho que decide muito do futuro do dia correr bem, encaro a hipótese de querer dar uma volta ao mundo. Se mais para a tarde me começar a aborrecer e chegar à conclusão de que não vale a pena o esforço, adio tudo para um dia próximo, ou longínquo, logo se verá. Uma coisa é certa, chegada a noite só quero ver televisão e não ter nada a ver com o que se passou durante o dia, estou isento do que aconteceu, se houve asneira ou não, o problema é dos outros. E se dormir em pesadelo, com interrupções para a insónia, amanhã então, será um dia de impropérios, asneiras, interjeições retorcidas, o que vier à boca e à mão para mandar o mundo aquela parte, a parte que me chateia do mundo

ERA INEVITÁVEL, DESDE O PRIMEIRO INSTANTE

Quase juntos, nós, chegando-se, um não saber porquê de querer estar juntinhos, coladinhos, um toque ainda estranho que apetece muito. Acabados de conhecer. E usar diminutos, nesta conversa, interior, muda, de apaixonados, quando ainda mal começamos a ser. Apaixonados. Aprovando com o olhar a linguagem do teu corpo, orgulhoso, querendo cantar para o mundo, a irrepreensível beleza – nos meus olhos – do teu corpo que ainda não explorei. Acabámos de nos apresentar e já estou assim, desarmado e pelo beiço.   

PERCURSOS DO DESASSOSSEGO

Estão todos convidados: PERCURSOS DO DESSASSOSSEGO “A arte serve como fuga para a sensibilidade que a acção teve que esquecer” , diz Pessoa. É o livro do Desassossego, um espaço enorme, sem fim, misterioso, sugestivo, que me encaminha para a criação dos meus percursos do desassossego. Este projecto é,  como me acontece frequentemente, a consequência de um eco, que ecoa persistentemente na minha mémoria, desde a primeira leitura deste livro que ocupa dentro de mim um espaço mental meu amplo e profundo. Em  Março de 2016, tomei a decisão, impulsionada por esta intensidade emocional, de rumar a Lisboa, percorrê-la durante quinze dias. Nesses percursos vou transformando em experiência, o que a minha imaginação alimentou durante bastante tempo. A subjectividade do heterónimo de Pessoa ,  Bernardo Soares, projecta-se sobre as banalidades da vida e do quotidiano, e as minhas emoções baixam um filtro sobre as minhas reflexões. Durante quinze dias, quinze percursos diferen

A POESIA

A poesia é o espaço das coisas improváveis, a possibilidade infinda dos impossíveis. Tudo pode ser belamente dito em todas as línguas, sem concessões nem acordos, a não ser o acordo de que a poesia é a mais livre das expressões. Na terra incógnita da poesia, fazem-se fumigações diárias para eliminar as unanimidades aceites por cem por cento de todos. A poesia é encantadoramente rebelde e gosta de picardias. É necessária pelo menos uma dissonância para se viver na liberdade deste imenso país inóspito que fica depois da cartografia das outras artes. Quem tiver essa bagagem de liberdade, aventure-se nela. E não se julgue que é longínqua, que a viagem é demorada. É já ali, a poesia. Virar em qualquer direcção, ao contornar o cotovelo apertado do pudor. Ultrapassado esse nó, dá-se de caras com a terra prometida. Não tem portageiros nem fronteira. É fácil conseguir  autorização de residência. Depois, é desfrutar. É um país cheio de belezas naturais

PAZ

Há locais a céu aberto que são como as igrejas.  Não digo os campos, os montes, os mares. Falo da cidade que é o que sei e não sou estranho. Não é um vazio, é um nada não-gravitacional, uma paz, muita paz, que não se consegue sequer esboçar a tentativa de a descrever. As palavras não dão para tudo, nem as imagens, só as sensações. Essa paz é bem-estar, é uma conciliação com o universo inteiro e que mais haja. Não é religiosa, não é mística, e nem espiritual, ou é tudo isso, ou tem outros nomes. Encontro lugares desses por toda a parte quando não os espero, porque vou absorvido nos pensamentos habituais de um mortal que tem contas para pagar, e aproveita o ritmo dos seus passos para organizar as suas contabilidades. Dou com eles pelo que julgo ser um mero acaso e tenho exactamente as mesmas sensações - que não consigo descrever - que tenho quando me sento na igreja, num fim de tarde vindo do trabalho e a caminho de qualquer coisa. Estou ali para de

ONDE MORO

Quando flano na minha forma bizarra de caminhar: um balancear de corpo que pode parecer um tudo nada ridículo aos olhos de outros passeantes, olho para as casas que não se escondem atrás dos reposteiros corridos das janelas. Imagino coisas. Sonho-me possuidor e fico feliz por isso, por dispor de todas as riquezas e misérias que antevejo existirem nessas casas. Faço fotografias mentais das pessoas que lá vivem, estimulantes umas, outras bocejantes; os objectos acumulados com que ainda contam e os que já abandonaram o olhar deles; os belos ou menos belos quadros pendurados nas paredes, com molduras condignas, ou as que se puderam comprar; a cor das paredes, que dá muitas pistas dos que as escolheram e mandaram pintar; os móveis de vários estilos, ou nenhum; os candeeiros - se bem prefira os de pé com abajour de seda - a luz deve ser amarelada e difusa, e dar espaço a zonas de penumbra, gosto dela, macambúzia como eu. Que se entenda, quando vou a andar, e desperto a atenç

TALENTO

                                                           foto: Débora Esaguy Há o esforço, a persistência, trabalhos duros a desoras. Frustrações, desalentos, desistência, retorno. Há o dizer-se isso que fica bem. todos se solidarizam  com esses exemplos, relatos genuínos e sérios, a bnegação e muitos suores. Resistência. Há tudo isso, e tudo isso é bem e bonito, Mas o que verdadeiramente acontece é um não claramente explicável acontecimento do momento que se espera sejam mais do que um e muitas vezes, Em que a palavra escrita, a pincelada, a nota de música, outra, Não obedece ao banal descritivo dos pensamentos tidos, e ganha uma expressão única: mais bem dita, melhor pintada, de execução exemplar. E quando é assim, é como se queria que fosse sempre, mas só o é fugazmente, e por vezes nunca. Quem é o criador? O Eu ou um outro Eu por nós? As dúvidas que sempre serão dúvidas. O esforço que será sempre tão cansativo.