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ABRIL CANSA-ME

É sempre assim! No princípio é só magnetismo, delícias de mil e uma noites, a fruição de todos os instantes, mas à medida que viram as folhas dos seus dias contados, vão ficando enfadonhos, não chegam ao fim, nem os podemos ver, os dias do mês. Este ano não vou comemorar Abril, viro-me para outros. Os outros andam meio aborrecidos comigo – não os mimo convenientemente, nem um piropo – e aceito as suas razões. Abril caiu-me sempre bem, mas o clima tem mudado muito, e nos últimos anos tem sido um mês de chuvas inesperadas, bruscas mudanças de temperatura, uma grande instabilidade que se reflecte nas pessoas. Optimistas que sejamos, um clima débil de carácter, erode o alento, baixa a guarda, não se sabe o que vestir. Nesse respeito deixámos de contar com Abril, que se tornou volúvel, dúbio, pouco fiável. Há outros meses que não me lembro habitualmente deles e merecem um olhar novo. Por exemplo Maio. Antes via-o como a passagem feita a correr para o Verão, logo al

FOMOS OS PERCURSORES DO TURISMO EM LISBOA

Nem um “ai” num boletim municipal, uma referência do Turismo de Lisboa, nada! Fomos a primeira start-up, ainda o nome não existia, nem se sabia o que era (nem hoje). Os comerciantes de Lisboa tinham uma ideia distante do idioma espanhol, eram os caramelos e pouco mais; meia-dúzia tinha umas luzes esbatidas do significado de quatro ou cinco palavras em francês, porque tinham familiares nos bidonville à volta de Paris; o Inglês falavam os bárbaros. Não se tinha visto a cara a um chinês, a um russo, a um angolano com dinheiro. A Avenida da Liberdade tinha consultórios médicos e cinemas. Em Alfama o fado escorria pelas paredes dos botequins de copo “três” e atiravam-se pelas janelas os restos das couves e das sardinhas do almoço. As conservas andavam pelas ruas da amargura e nem nós as comprávamos – por muito bonitas que fossem as embalagens. Só havia dois tipos de alojamento temporário para pessoas em trânsito: pensões com camas de casal partilhadas com per

O ABRAÇO

O universo desabou numa sala anónima de um aeroporto e eu protejo com um abraço a minha família: a minha mulher, o meu filho. Protejo-os para a vida. Não percebo o que está a acontecer, uso-me do instinto, a minha lucidez.  Não dou ao meu filho tempo para chorar, e é disso mesmo que o protejo, para que não chore. Se o fizer, ficará para sempre impedido de ser ingénuo, perde a sua naturalidade, tão pequeno ainda, impedido de futuro numa sala anónima salpicada de corpo s inertes à sua volta, a pior vilania que a vida lhe pode oferecer. Vou trazê-lo para a rua, disfarçando como se nada fosse, de mão dada os três, e quando chegarmos a um ar que se respire, vamos comer um doce, vou dar-lhe um brinquedo que goste sem olhar a custos, beijarei a minha linda esposa, e continuaremos a viver, com novos medos, mas atentos a que ele não chore nunca. Chorar é o que eles querem ver de nós, que sejamos tristes. Mas com o meu filho, não. Enquanto nos beijarmos e nos abraçarmos com esta

ANOTAÇÕES SOBRE O AMOR I

Perdemos um amor, algures, nos fios que tecem a vida. Um grande amor ou a sua possibilidade. Num desencontro de minutos, à porta de um bar, numa paragem do eléctrico, na nossa cabeça, num equívoco da nossa cabeça, numa ilusão enganosa, numa desilusão anunciada. Há amores que ficam amarrados a um cais, fazem-se estátua. Encontramos, perdemos, voltamos a encontrar, perdemos uma vez mais. O mundo rodopia sem misericórdias nem sentimentalismos, não tem alma mas é a casa da nossa. Não encontramos quem julgamos que queríamos, não sabemos quem queremos encontrar, perdemos quem não sabíamos que queríamos e afinal estava ali, à distância de uma mão aberta, fácil de acariciar, que se esfumou num nada. Mal decididos, desassossegados. “Gira que gira/E torna a girar/A vida que querias/Não te posso dar.”

UMA IDEIA DE PURGATÓRIO

Não sei, mas devo viver no purgatório, pensei que tinha outro nome. Se não é o purgatório é o mais parecido na terra duma morada no além. Como cheguei a esta conclusão bizarra? Os vizinhos de cima passam o dia a ouvir missa (é bem possível que seja um sistema que funciona em “loop”), ouvem-na eles e todos os outros vizinhos mesmo sem nos terem perguntado se queremos. Fica-se a saber que as colunas de som são de qualidade. Porque repetem tantas vezes esta ladaínha se a sabem de cor, há anos a praticarem, podendo perfeitamente dizê-la silenciosamente para dentro sem obrigarem os vizinhos a fazerem o papel de figurantes obrigados? Até porque se sabe que Deus aprecia mais a intimidade de um suspiro interior, uma introspecção comedida que os berreiros das feiras. Deus é o primeiro a respeitar a intimidade de cada um. Portanto no alto de nós, no andar superior, na colocação devida, temos o Céu. Olhando para baixo: A vizinha do nível inferior ao nosso, pas

MIRADESES NÃO É FAMOSA

Miradeses tem um rio formoso e uma praia fluvial, e tem um dólmen com uma caixa de correio verde dentro, e tem um cristo crucificado dentro de um casinhoto branco com portas de ferro forjado igualmente verdes, e amendoeiras com as suas flores a florirem antes de tempo, e produz provavelmente um dos melhores tintos da região. Do alto de Miradeses vê-se a serra de Santa Comba. Esta serra guarda o segredo de uma lenda, da pastorinha, e de como Deus quando está inspirado, opera grandes milagres. Miradeses é uma aldeia resguardada na “terra quente”, em Trás-os-Montes, assim como a serra de Santa Comba, 1041 metros – que não é uma altura por-aí-além para ser notícia -, a pastora está encerrada num calhau granítico que eles chamam fraga, é agora santa, e Deus, é Deus e está em todo o lado. Afinal Miradeses tem muita coisa, outras que não se contam agora, só indo e só vendo. Mas miradeses não é Paris, não é Berlim, não se localiza no Paquistão, ou no Brasil,

MIRADESES TEM UM RIO

Formoso. Nasce no estrangeiro – galego - e desagua no Tuela, quando passa na aldeia faz-se de grande, rio crescido, alarga a distância entre as duas margens. Nesse ponto não tem fundura, não ultrapassa a linha dos joelhos de um adulto, não dá para natações, nem exercícios de estilos. No verão os utentes ficam deitados, ancorados ao chão arenoso, nessa doce modorra põem a escrita da vida em dia, olhos alapardados no céu azul. As margens que desenham os contornos dos rios são duas vizinhas rivais. Aqui, uma aloja o casario granítico, ou inacabado, a outra, oliveiras e campo de pasto das ovelhas, que por lá se avistam, guardadas pelos mastodônticos cães de gado transmontano, cães imensos, com feições e corpanzil de se darem ao respeito, todavia, subornáveis por uma boa carícia, como qualquer dos mortais. Uma placa numa pedra em imitação de menhir, anuncia-a como a “Terra dos Engomadinhos”. Pode ser, não se viu nenhum, nem descobriu a origem dessa nomeação.