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Mensagens

ANOTAÇÕES SOBRE O AMOR I

Perdemos um amor, algures, nos fios que tecem a vida. Um grande amor ou a sua possibilidade. Num desencontro de minutos, à porta de um bar, numa paragem do eléctrico, na nossa cabeça, num equívoco da nossa cabeça, numa ilusão enganosa, numa desilusão anunciada. Há amores que ficam amarrados a um cais, fazem-se estátua. Encontramos, perdemos, voltamos a encontrar, perdemos uma vez mais. O mundo rodopia sem misericórdias nem sentimentalismos, não tem alma mas é a casa da nossa. Não encontramos quem julgamos que queríamos, não sabemos quem queremos encontrar, perdemos quem não sabíamos que queríamos e afinal estava ali, à distância de uma mão aberta, fácil de acariciar, que se esfumou num nada. Mal decididos, desassossegados. “Gira que gira/E torna a girar/A vida que querias/Não te posso dar.”

UMA IDEIA DE PURGATÓRIO

Não sei, mas devo viver no purgatório, pensei que tinha outro nome. Se não é o purgatório é o mais parecido na terra duma morada no além. Como cheguei a esta conclusão bizarra? Os vizinhos de cima passam o dia a ouvir missa (é bem possível que seja um sistema que funciona em “loop”), ouvem-na eles e todos os outros vizinhos mesmo sem nos terem perguntado se queremos. Fica-se a saber que as colunas de som são de qualidade. Porque repetem tantas vezes esta ladaínha se a sabem de cor, há anos a praticarem, podendo perfeitamente dizê-la silenciosamente para dentro sem obrigarem os vizinhos a fazerem o papel de figurantes obrigados? Até porque se sabe que Deus aprecia mais a intimidade de um suspiro interior, uma introspecção comedida que os berreiros das feiras. Deus é o primeiro a respeitar a intimidade de cada um. Portanto no alto de nós, no andar superior, na colocação devida, temos o Céu. Olhando para baixo: A vizinha do nível inferior ao nosso, pas

MIRADESES NÃO É FAMOSA

Miradeses tem um rio formoso e uma praia fluvial, e tem um dólmen com uma caixa de correio verde dentro, e tem um cristo crucificado dentro de um casinhoto branco com portas de ferro forjado igualmente verdes, e amendoeiras com as suas flores a florirem antes de tempo, e produz provavelmente um dos melhores tintos da região. Do alto de Miradeses vê-se a serra de Santa Comba. Esta serra guarda o segredo de uma lenda, da pastorinha, e de como Deus quando está inspirado, opera grandes milagres. Miradeses é uma aldeia resguardada na “terra quente”, em Trás-os-Montes, assim como a serra de Santa Comba, 1041 metros – que não é uma altura por-aí-além para ser notícia -, a pastora está encerrada num calhau granítico que eles chamam fraga, é agora santa, e Deus, é Deus e está em todo o lado. Afinal Miradeses tem muita coisa, outras que não se contam agora, só indo e só vendo. Mas miradeses não é Paris, não é Berlim, não se localiza no Paquistão, ou no Brasil,

MIRADESES TEM UM RIO

Formoso. Nasce no estrangeiro – galego - e desagua no Tuela, quando passa na aldeia faz-se de grande, rio crescido, alarga a distância entre as duas margens. Nesse ponto não tem fundura, não ultrapassa a linha dos joelhos de um adulto, não dá para natações, nem exercícios de estilos. No verão os utentes ficam deitados, ancorados ao chão arenoso, nessa doce modorra põem a escrita da vida em dia, olhos alapardados no céu azul. As margens que desenham os contornos dos rios são duas vizinhas rivais. Aqui, uma aloja o casario granítico, ou inacabado, a outra, oliveiras e campo de pasto das ovelhas, que por lá se avistam, guardadas pelos mastodônticos cães de gado transmontano, cães imensos, com feições e corpanzil de se darem ao respeito, todavia, subornáveis por uma boa carícia, como qualquer dos mortais. Uma placa numa pedra em imitação de menhir, anuncia-a como a “Terra dos Engomadinhos”. Pode ser, não se viu nenhum, nem descobriu a origem dessa nomeação.

A DOENÇA

Conheço-o mas não sei o nome. São os nomes que me falham, os rostos não. Os nomes têm letras e são essas que me entontecem. São muitas, não as junto bem. Quando me abordam, os rostos, não sei o que dizer. A cabeça para, fico a observar, a ver no que vai dar. Abordam-me com simpatia, eu queria ser educado, mas não sai nada. Por vezes, desbloqueia-se um encadeado de letras, saem com uma velocidade inaudita, e digo-o, desanuvia-me. Mas o rosto que fiz o favor de lhe dar um nome, não gosta.  Contrapõe com perguntas inconvenientes. “Quem é ele?”, “Como se chama?”, “Graus de parentesco?” Nesses momentos fico cansado, enervo-me, perco o controlo das letras, e para não ser inconveniente, olho, só olho, de olhos bem abertos, sem nada para dizer. Ainda ontem, deve ter sido ontem, estava a tratar de uns assuntos importantes com a minha mãe, na cozinha, coisas da morte dela e do funeral que não gostou porque teve pouca gente, estavam também uns amigos do Gás que entraram pelas esc

DARWIN E A EVOLUÇÃO DAS ESPÉCIES

Quando uma sociedade não reage - não os cidadãos em geral, que esses só se queixam, ou dizem mal, ou tentam arranjar estratagemas criativos de imitação dos grandes corruptos, os verdadeiros modelos do mundo moderno –, nas suas estruturas inflexíveis, simplificando e deitando um simples olhar humano para os outros, em vez de seguir os guiões dos protocolos, das convenções, das ordens de serviço, da linha burocrática do requerimento, dos carimbos, dos tempos intermináveis que a burocracia inventou para fazer esmorecer as pessoas;quando chegamos a esse ponto em que a miséria, a fome, os maus-tratos, a morte, são laçarotes descoloridos que enfeitam as notícias das televisões,sempre as mesmas histórias, todos os dias iguais, só com nomes de actores diferentes; quando chegamos aqui, assim, não parece que tenha havido uma evolução na espécie. Claro que existem estradas magníficas que intersectam toda a geografia; um número incontável de carros confortáveis e rápidos que levam as pess

O DIVINO ESCORRE-ME PELAS PAREDES

Deus pinga-me do tecto e escorre pelas paredes, todos os dias às sete horas da manhã e à mesma hora da tarde. Tem uma pontualidade que me deixa perplexo: como Deus, podia dar nota da sua presença a qualquer momento, sem se anunciar, mas não, é com o tempo marcado. Nestas infiltrações no meu apartamento, jorram orações em ladainha, cânticos tristes espicham, sermões soturnos traçam riscos negros descendentes, todo um oceano que desagua na minha casa. Para sermos rigorosos fazemos a correcção de que não é Deus que escorre pelas minhas paredes brancas. É um acólito seu. Esse padre anónimo (presume-se que seja padre) é a voz da missa transmitida na radiotelefonia. Não se dando a ver a não ser ouvido pelo fenómeno do som - neste caso um som que pinga por paredes e tectos – podia ser mesmo Deus em pessoa que é assim que os milagres acontecem: estranhos e com um sentido de oportunidade muito próprio. Eu, pelo menos acredito na possibilidade de um milagre assim: palavras sonor