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O Homem que escreve histórias de Amor

O local não podia ser mais arejado, é irrelevante se faz bom tempo, que agrinalda o espaço, ou se chove: uma cortina de pingos de chuva pode ser plúmbea de bonita. Neste caso em que o tempo climatérico não conta, avistam-se cumes de mastros com movimentos ritmados num parque de estacionamento para barcos de recreio. Em segundo plano corre um rio que nesse acontecimento terminal de ser rio penetra na salinidade do mar, une-se com o seu infinito, realizado está. É um segundo plano, porque entre os mastros e essa qualquer coisa que desconfiamos seja mar, armazéns desfeiam o que podia ser poesia. António foi escolhido por esse lugar para viver e escrever cinco romances de amor. Cinco versões da mesma história, com nomes distintos, mas femininos, e todavia sobre o amor, o tema de toda a atenção. Na vida o que sobra de outros assuntos são banalidades. Este homem reside num endereço sem caixa de correio, vizinho de outros escritores de palavras que não escrevem sobre o amor, mas

A ALDEIA DE CAVALEIRO

«Estás bem apresentada, a boca toda a ensinar os dentes!» «Casaste bem ontem à noite, não?» «O ti Quim também parece que dormiu pouco mas não deve ter sido da raladeira!» «Esqueci-me dos comprimidos.» «E o que vai ser?» «Se me apuseres em cheirinho de licor beirão,c’o café ficava bem!» Uma aldeia que se chama Cavaleiro, abaixo para quem desce ao Sul, de Almograve: uma rotunda com uma rua principal a desembocar numa praia vaidosa, como todas as do Litoral alentejano. Hoje é dia de inauguração, os da Junta todos em nervoseira: os vendedores de camionetas ambulantes de peixe e de verduras e de batas com cores garridas, tem um novo espaço para feirarem, devidamente assinalado com uma tabuleta minúscula, mas garbosa, que ainda por cima não assinala bem. Correções de sinalética autárquica a serem levadas a Assembleia. No ajuntamento de poucas casas de Cavaleiro,a caminho do Cabo Sardão, está o bar da Adélia, o único “ spot ” com conexão ao ciber -espaço, onde se misturam as conve

PROCISSÃO

As festas da nossa aldeia, estejam elas habitadas por fantasmas que há sua maneira também comemoram, ou recebam um milhão de festejadores, são as festas da nossa aldeia, as melhores, o nosso orgulho. O marco geodésico que sinaliza a comunidade exactamente geográfica onde nascemos, ou onde queríamos haver nascido e da qual nos fazemos adoptar como filhos da terra - demos as voltas que dermos por esse mundo fora – é a guardiã extremosa da nossa essência, que se chama folego: um sopro-chama, que nos soprou pela primeira vez, enviando-nos para as rotas a cumprir na vida. Todos os anos, com hora marcada abraçam-se de costados os emigrados, rapa-se o fundo às conversas para pôr em dia, faz-se a procissão da santa, come-se e bebe-se, e a música pirosa e brejeira, ouve-se em volume estúpido, saída aos gorgorejos dos auto-falantes pendurados nos candeeiros de rua. Pela manhã quando o tempo ainda está propício a louvarmos o Senhor, sai a procissão finda a missa solene celebrada

O OLHO DA TIA FLORINDA

A minha tia tinha um olho de vidro e à noite afogava-o, maneira de dizer,num copo de água em cima do psiché . A água não era gaseificada, mas constituíam-se pequeníssimas e inúmeras bolhas à sua volta. A modos que um olho numa   flute   de champanhe. Para quem está habituado a dentaduras a boiar, esta foi uma grande ideia da minha tia. Sendo uma mulher com o sentido prático da vida, e como não se está a ver ninguém dormir com um fechado e outro aberto,    não tendo outros inquilinos, arrendou o aquário ao vítreo. Foi o meu avô que lhe ofereceu o olho, mais para ganhar as graças da sogra e ficar oficializado o namoro com a minha avó, sua irmã, do que por atenções à zarolha. Foi no entanto um gesto de simpatia. Um dia já sem memória que a bicheza das campas    as comeram ao mesmo tempo que as carnes, chegou a casa delas com um embrulho de papel pardo na mão e disse alheadamente:  « toma, a vê se encaixa». A minha tia desembrulhou-o na expectativa das tes

AS FESTAS DE LISBOA

                     Ilustração Paulo Robalo Esta cidade tem um santo a meias. Melhor metade que nenhum - é meio abençoada - o que não está nada mal dada a carência de protecções divinas. Os  académicos e canónicos disputam a naturalidade do santo, afogando-se em investigações e escrita de teses, gastam uma vida isto. “Nasceu aqui”, ”É mais dali do que daqui”, “Não é italiano”, ”Ai isso é que é!”, o que transforma a questão num grande enjoo e tédio. Não sabem eles que os santos não reivindicam certidões de nascimento, e estão no mundo para serem do mundo, distanciados de clubismos geográficos. O nosso meio santo - reza a lenda acabada de inventar - gostava da folia e não resistia a um belo bailarico, apesar da sotaina dificultar a soltura de movimentos. Era igualmente dado aos prazeres da comida e do refrigério, tinha portanto uma barriga generosamente saliente, sinal de bonomia. Como a Regra o impedia – e ele era dos mais cumpridores – de se ligar em matrimónios, fe

ANIVERSÁRIO

Tenho a noção do momento em que deixei de ser imortal, e disfarcei como se não fosse comigo. Olhei para o lado e não dei importância a esse contratempo: orgulho é inconsciência. Tratei do assunto com se fosse uma indisposição temporária, e segui a minha vida, mas as ressacas nunca mais foram as mesmas. Desde aí tenho vindo a aguentar os insucessos físicos, alguns inconseguimentos que não nos deixam confortáveis, falhas de memória também, e faço como se não fosse comigo. Assobio para o lado, persistente na teimosia do inevitável, ou se calhar agindo como um idiota chapado. Inevitável é uma palavra definitiva, sem contraditório. Irritam-me palavras assim! Faz algum sentido existirem palavras que não permitem uma conversa civilizada? A apresentação dos argumentos, a possibilidade de um acordo, no meio caminho do que ambas as partes queriam no início das negociações? Vais começar e já está colocado – no ponto de partida – o ponto do final? O meu corpo deixou de ser belo se é qu

O estranho estrangeiro

A música é uma grande abstracção, tão enorme que transforma os infernos em locais aceitáveis. Os sons e as ausências calculadas deles, esticam o fruir dos homens ao limite, e é pousados nessa linha invisível, que descobrem finalmente o infinito. Ele é um desabrigado cheio de classe, sim se essa designação pode ser atribuível à classe dos sem-abrigo, já que se tem que pôr rótulos em tudo. Aparece materializado do nada, com aparecimentos referenciados em vários locais ao mesmo tempo. Pode ser um demiurgo, prestidigitador, que tenha descoberto a arte de viajar no tempo, ou simplesmente um outro ser, o que complica muito as coisas do entendimento. Numa tentativa de fazer a sua descrição, dir-se-ía um indivíduo longilíneo, a apontar para o alto, aparentando uma grande leveza: tem movimentos lentos, flutuantes, executados em gravidade zero, não denotando esforço nem respiração. Sendo certo que a sua roupa não está actualizada, visíveis os sinais de abuso, não se pode dizer que a