Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

O estranho estrangeiro

A música é uma grande abstracção, tão enorme que transforma os infernos em locais aceitáveis. Os sons e as ausências calculadas deles, esticam o fruir dos homens ao limite, e é pousados nessa linha invisível, que descobrem finalmente o infinito. Ele é um desabrigado cheio de classe, sim se essa designação pode ser atribuível à classe dos sem-abrigo, já que se tem que pôr rótulos em tudo. Aparece materializado do nada, com aparecimentos referenciados em vários locais ao mesmo tempo. Pode ser um demiurgo, prestidigitador, que tenha descoberto a arte de viajar no tempo, ou simplesmente um outro ser, o que complica muito as coisas do entendimento. Numa tentativa de fazer a sua descrição, dir-se-ía um indivíduo longilíneo, a apontar para o alto, aparentando uma grande leveza: tem movimentos lentos, flutuantes, executados em gravidade zero, não denotando esforço nem respiração. Sendo certo que a sua roupa não está actualizada, visíveis os sinais de abuso, não se pode dizer que a

FESTAS NA MOITA

Nas ruas, grossas traves de madeira protegem as bestas das pessoas . Delimitam os espectadores dos “artistas”. Dá-se início à representação de um espectáculo antigo, uma tradição, palavra ofendida. Às 24h00 em ponto largam-se as bestas na Avenida Teófilo de Braga, para gáudio e excitação popular. Esperam-se cornadas boas, piruetas e volteios, e algum sangue, o suficiente para colorir o ambiente. As pessoas gostam de ser abalroadas! Depois dos fados nas escadarias da Câmara Municipal e da arruada com a charanga musical, são às centenas os homens a correr à frente dos touros, uns a tentar escapar, outros a afrontar, a maioria só a ver, que de ver se enche o olho e leva-se experiência para contar aos amigos. A largada tem o grande desfecho na praça de touros, portas abertas, a arena livre por onde entram os animais e os homens, cumprindo estes remates finais de faenas, saídas em ombros ou nas mãos dos que transportam os feridos e os ébrios para a enfermaria. Animado pelo p

JOÃO

Uma noite fria e escura, tão escura que nem acreditamos nela como noite. Em condições normais as noites têm as luzes das estrelas acesas, penduradas na teia de palco do céu, mesmo que encobertas por mantos de nuvens, esta não está posta assim. Sob os auspícios desconfortáveis desse epifenómeno, debaixo de um viaduto da cidade, as paredes de betão estão forradas por azulejos com desenhos de medusas, em azul. Na rua que cruza essa ponte suspensa, uma marisqueira conhecida está banhada de luz e gente, e talvez por isso, por ser reconhecida, do lado de cá os carros com assinatura esperam que os ocupantes os venham buscar depois de refeições que não são baratas. Regressam mais tarde ou mais cedo, animados pela qualidade dos vinhos. O João toma pouco conta dos carros. O que faz ali, nesse sítio, é estar estacionado como os carros. Não se dá por ele, não se vai dar falta dele. Mendiga euro s no enquadramento das medusas, em que nunca reparou. É um homem falho de história, há h

“Quem nos deu olhos para ver os astros”

Reparo num interruptor desapercebido, modelo antigo. É um objecto a que não resisto, especialmente se me obriga ao descontrolo da vontade, à  curiosidade do que vai acontecer após o meu toque . Não sei o que fazer. Não tenho a certeza até pela estranheza da situação, se estou desperto, dono de mim, ou num  sono profundo, Numa situação normal, que não é, exploraria as possibilidades do botão. Sendo uma  situação pouco cómoda em que é bem possível estar a dormir - no enliço de morfeu - tudo se torna surreal e as conjugações de acções prováveis da minha opção, entram nas areias movediças de uma tomada de decisão. Arrisco. Não será grande a diferença se a cena está dentro ou fora da minha cabeça. Se estiver dentro, sou deus, se fora sujeito-me. Sinto-me com coragem. O  indicador da mão direita obriga-se a esse impulso irrevogável e movo o pinolete para baixo. Olha! O mapa do céu! O silêncio da

NA ALDEIA DA COMPORTA

A manhã está fresca, mas nada que se compare a outras manhãs no inverno. Está fresca mas já é outra coisa, apresenta-se com uma ligeireza de se querer acalorar. Sente-se no ar, e na disposição. Pressente-se a possibilidade de um dia menos macambúzio. Augusto finaliza os preparativos de aparelhar a sua famel , companheira de uma vida em banho-maria: os dois, em navegações à vista em modo tépido. Sem surpresas – que é um forma de dizer nenhumas - nem alteração do plano estabelecido, abre-se a cortina do quotidiano. O seu veículo e compadre, tem manias – não pega à primeira - e só reage por vontade própria, por muito que o Augusto o maldiga com o costumeiro chorrilho de asneiradas e ensaios de pontapé. É assim esta relação, intempestiva e amorosa, como todas as ralações que desgovernam o coração. Resolvidas as dialéticas homem-máquina que apesar das diferenças de espécie não deixam de ser arrufos sentimentais, lá arrancam, amuados para não variar. Sem pressa para ch

FLORES DE ABRIL

Abril é o mês em que as pétalas de todos os nomes de flores se espreguiçam na sua plenitude insinuante, provocando os transeuntes distraídos. Não sei se será assim de verdadeiro nos manuais da botânica: todas as flores florirem ao mesmo tempo - tenho incómodos com as ciências exactas, o que amplifica muito as minhas imprecisões- mas inventei uma crença sobre esse desabrochar avassalador, e até que me desconvença não arredo pé de uma ideia que me parece decente, para não dizer honestamente apropriada. Todas florescem em Abril, até as sardinhas, que sendo peixes, são as flores do nosso mar. Saltam vivinhas e malandras, espelhando dourados ofuscantes na reflexão dos raios do sol – insinuantes os raios que ensaiam iridescências do verão que se anuncia. Como são flores – naturalmente femininas e vaidosas - fazem-se convencidas nas suas exuberâncias sensuais, apresentando os vestidos mais atraentes, na plenitude da jovialidade. A frescura das suas pétalas tira-nos do sério

UM ANJO

Hoje cruzei-me com um anjo, numa paragem de autocarro. Andam por todo o lado, principalmente nos locais menos prováveis. As pessoas dizem que não os veem, não os encontram, porque andam tão assolapadas nos seus aturdimentos da vida, que só olham e não veem. Este anjo apresentava-se banal. Não irradiava luminescências, nem outros fogachos de artifício. Era um ser simples disfarçado em cão. A don a, um ser igualmente lindíssimo, afagava-o na paragem do autocarro. Afagava-o mas não o via, não podia. O cão-anjo, cumprindo a rigor os preceitos das entidades angelicais, estava simplesmente presente, derretendo-se com as carícias da dona. E olhava-a dizendo precisamente isso: amor. “Aqui estou para te guiar e tu comigo para me fazeres festas, que é o que mais gosto". Vi hoje um anjo, e fiquei especado e parvo a vê-los os dois amando-se perdidamente em plena via pública. Ganhei este fim de dia de Abril ensolarado. Que raio de mês este, que mexe tanto comigo!