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Mensagens

As festas da minha aldeia

Agosto é o melhor mês do ano. Gosto de todos, mas este, para mim, é o mais bonito dos nomes com que baptizámos as fatias do tempo. Agosto é o mês dos campos posto em sossego, da família que nos visita, das festas em honra da nossa padroeira. O Farrusco e eu andamos desvairados nos preparativos das festas da aldeia. O Farrusco é cão, mas é o meu familiar mais próximo. Os outros estão lá fora (porque raio se diz lá fora?), e é por essa razão que a comissão organizadora das festas da minha aldeia só tem dois elementos. Não há mais habitantes, e com os fantasmas não se conta, que eles para mexerem um dedo, está quieto! Só estorvam. É uma trabalheira doida, só uma pessoa e outra que é metade de pessoa, mas a vontade é muita e somos profissionais nos festejos, sentimentais portanto. Este casario é mais um lugarejo acanhado do que uma aldeia, mas tem igreja e escola, o que é fundamental para a sua dignidade de aldeia, apesar de não terem uso. Como somos pouco

Gosto muito das touradas

Dos moços de collants e jaquetas às flores, unidos a abraçarem o touro – alguns estão mesmo emocionados, encostam as suas cabeças e beijam-no. Dos rapazes montados nas mulas quase tão espertas como os cavalos - aos pinotes e piruetas - eles com chapéus de plumas ao vento, e majestáticas camisas de seda com folhos brancos. Dos paus com que eles brin cam com os animais  a fingir que espetam, mas não, embrulhadas ( as canas) em papelotes coloridos e com finos arpões de borracha – a fazer de metal - na ponta. Dos outros rapazes, igualmente de collants a sacudirem freneticamente uma espécie de tapete a atirar para o rosa, em frente do touro. Das filarmónicas que tocam músicas que entram no ouvido, fáceis de trautear. Do senhor da corneta, sempre de luvas (queimou as mãos quando entornou a panela de sopa de rabo de boi que estava a fazer) alvas, com uma gravata preta, apertada, em esforços de contenção das banhas do pescoço, ou do esforçado sopro no bocal da gaita

Eu escolho os homens

Gostaria de conversar com os deuses. Trocar imprecisões, as minhas com as deles, num fim de tarde num miradouro simpático de Lisboa. Confidências mesmo, partilhar em cumplicidade pequenos segredos pessoais do dia a dia.  Eu arriscaria algumas vezes – poucas – um conselho, eles na sua experiência de deuses, e com o domínio que têm do tempo – eterno no seu caso - deixariam cair uma ou outra pista, para eu emendar a mão aqui e alí de algumas decisões (minhas) nem sempre felizes. Sendo humano tenho sempre a desculpa de falhar, e também de aprender.  É claro que no final (desse encontro numa esplanada) cada um pagaria a sua conta. Só assim vamos para casa descansados. Eu tenho fins de dia mal conseguidos, em que me encaixaria facilmente num ombro amigo. Infelizmente – ou não – nenhum deus habita na minha cabeça, nem no coração – a morada que dei para me enviarem as cartas de amor. Sobrevivo a essa ausência - muito decentemente diga-se - porque os meus níveis de felicid

Resposta a "Prerrogativas" de Miguel Esteves Cardoso (Públio - opinião - 22 Agosto 2014

Este sim é o Cardoso que eu gosto! Que verve! Que fulgor! A sua palavra, penetrante, profunda, a babar de conteudo, a entrar pelos nossos poros adentro, a remexer as nossas cabe ç as, expurgando as nossas ideias doentes, curando-as , com conselhos “ vai por aqui, pensa assim, D.Sebasti ã o é que é bom... ” Este homem é um vulc ã o incandescente. Faz-nos at é ter pena de n ó s pr ó prios, porque ous á mos dirigir-nos a um deus do Olimpo e n ã o concordar com as suas escolhas, num dia mau. Este é o Esteves combativo, messi â nico, com a cruz de cristo no avental, lutador de causas po é ticas. Este, sim, é o Homem – ecce homo – renascentista em tempos de trevas. E os autores que conhece: o Noam, o Perry, o Slavoj, o Terry, o David, o Roger, que bagagem, que cultura! S ó para terminar amigo e Professor, eu sou daqueles que defende a liberdade de express ã o n ã o hip ó crita, n ã o manipuladora, n ã o arregimentada. E assim gastei os cin

Carta a Miguel Esteves Cardoso*

  Caro Miguel Esteves Cardoso (deveria antepor “Doutor”?), Permita-me esta convivialidade do “caro”. O Senhor (quiçá “Doutor”),   é um símbolo da minha geração. Visionário, inovador, empreendedor de ideias nunca antes pensadas, andava eu e quase toda a minha geração a tentar ver-se livre dos cueiros com pó de talco   – já o Senhor irrompia (estrela ofuscante), na arte das palavras em tudo quanto era sítio: nos jornais,nas radios,nas editoras discográficas, nas televisões, o que mais houvesse! Deus, a existir, distribui os talentos à sua maneira. Para uns, poucos ou nenhuns, para alguns, um que outro, para o Senhor ( é doutor!?)   logo agraciado com uma série deles. Alimentei-me em si nesses anos loucos, cresci porque me deu de beber o precioso néctar da sua clarividência, e continuo nesta existência difícil, empedernido e fidelíssimo, na espectativa diária das suas crónicas e dos seus livros de grande e merecido sucesso. Não lhe terem dado ainda um prémio dos bons, é

Milagre improvável

Numa ausência total de luz, em trevas muito densas e feias, Faiscou um relampejo. Eu, Selma, mártir entre os homens,  oferenda dos deuses e para vergonha de ambos, Lancei das alturas celestiais onde me encontro, Um míssil de flores luminosas, com um feitiço. Clareou-se o céu de todos os conflitos, numa chuva intensa de pétalas luminescentes. Irradiou luz e espalhou na terra sensações de bem-estar. Atónitos, desconcertados, sem antídoto contra os meus poderes de feiticeira boa, os homens desavindos depuseram as balas e as pedras. Alguns conseguiram chorar e não se sentiram mal por isso. Nessa bebedeira de emoções intensas, desataram aos abraços e aos beijos, escolheram pares aleatórios e dançaram - mesmo os coxos. As crianças fizeram as travessuras que lhes compete, sem necessidade de conceitos geo-políticos na sua cumplicidade de crianças: São ingénuas, não se enfrascam de rancores. Eu, Selma, a eterna virgem, a neonata e logo a neo-pós

Morri à porta de um refúgio de paz sem saber porquê

O meu nome é Selma: a amiga da Paz. Foi esse o meu nome, nos vinte dias que vivi na terra dos homens. Agora, que voltei a casa de deus, não sei como me chamo. Regressei ontem e ninguém me deu explicações. O que fui lá fazer se foi por tão pouco tempo? Morri, ainda nem vivida, à porta de um refúgio de paz, com o nome que me deram por engano. Vivi vinte dias sem ter tido tempo para aprender a dizer Amor – de todas, a palavra que eu mais gostaria de desfrutar . Vivi para aparecer – morta - numa fotografia, notícia efémera nas televisões do mundo dos homens. Amanhã, estou definitivamente esquecida. Hoje, no universo dos deuses, continuo esquecida. Um pedido de desculpas, seria suficiente. Gostaria de poder voltar uma vez mais a essa terra estranha, e chamar-me Shalom (paz), e ficar por lá algum tempo a brincar com as outras crianças. Gostaria, mas os deuses ainda são mais casmurros que os humanos, e as birras de meninos mimados que fazem c