A mãe contava inapropriadamente, deixando-o embaraçado, que o
parto tinha sido difícil. Ela a morrer esvaindo-se em sangue, ele sem respirar,
muito tempo, arroxeado já, até que lá se deu autorização à vida, para
aproveitar essa oportunidade, a de viver, uma lotaria que calha a muito poucos.
Tenha que efeitos tivesse tido essa anoxia no seu futuro e em
situações bem específicas em que precisava do oxigénio todo para decidir o
melhor, a ideia atroz e muito injusta, de ter sido quase o responsável pelas
perdas anormais de sangue da sua mãe, fizeram-no como se veio a fazer nem muito
nem pouco encorpado, o suficiente, e ainda bem que não deu para a misoginia,
uma enfermidade crónica e de mau prognóstico.
Sobreviveu e resolveu a questão considerando que a sua mãe era fraca
a julgar o carácter dos outros, ainda mais o do seu filho, que não tinha culpa
nenhuma na sua perda de líquidos vitais.
As coisas foram correndo e nunca mais se lembrou desse episódio
do qual nem sequer teve uma memória directa. Cumpriu anos, ciclos, fez o que
tinha a fazer, umas vezes com consciência, outras levado por impulsos meio
ilegais e obscuros que fluem nos íntimos de cada um, e agora, quando se está a
pôr o dia, originando intromissões de cores no céu, que não se esperavam umas
às outras, e ele a presenciar esta cena numa nesga da janela, vem-lhe à memória
a sua mãe que foi viajar e ele, amanhã, a dar-se por feliz por naquele dia de
grandes anemias, ter conseguido sorver na primeira inspiração, o ímpeto
necessário para ganhar a vontade de vir um dia a contar esse acontecimento,
desculpando a mãe, que era uma pessoa que não queria o mal de ninguém, só
atenção.
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