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A mostrar mensagens de 2021

O NATAL DO TIO VIRGÍLIO

  O tio Virgílio, que nunca soube da existência do poeta clássico romano e ainda assim conseguiu sobreviver e atingir o seu patamar de felicidade, era bombeiro na Companhia Reunida de Gás e Electricidade, nas bandas orientais da cidade, hoje um quarteirão moderno. Nunca apagou nenhum fogo, mas sempre que soava o alarme, conseguia vestir-se a tempo apesar da sua barriga, desproporcionada para a profissão de bombeiro, se bem nesses tempos, as exigências serem outras: um bom bigode, bem retorcido e colado nas pontas com brilhantina, e um ar sério e carrancudo, eram as condições de admissão.  Como não exercia a sua profissão, dedicava-se ao comércio de import-export. T inha boas relações com os das ambulâncias postais dos comboios, e dinamizava o negócio entre Espanha e Portugal. Caramelos, torrão de Alicante, bonecas sevilhanas, castanholas, mercadorias afins. O Tio Virgílio era nas festas natalícias, o responsável por amassar a massa das filhoses, trabalho a que ele dava importância, com

PAI NATAL

  Dávamos as mãos e lá íamos, pela rua Morais Soares abaixo. Eu pequenote, o mundo ainda a parecer-me maior do que é, imenso, eu minúsculo, percebi logo por essa desproporcionalidade como iriam ser as coisas no futuro. Era o passeio do ano. Da porta de casa ao início dessa rua cheia de movimento e lojas, atravessávamos o muro, alto, do cemitério do Alto de São João, o silêncio dos mortos, semi-obscuridade, eu cheio de medo deles, não sabendo que estando mortos não me podiam fazer mal, só os vivos. A Morais Soares, no sentido de quem ia, o nosso caso, é sempre a descer, e aos meus olhos poderia muito bem ser a Hollywood Boulevard , que eu ainda não conhecia, mas é a melhor comparação que me vem à ideia. Várias faixas de circulação automóvel, para cima e para baixo, as lojas iluminadas de tudo: camisarias, retrosarias, talhos, mercearias, casas de pasto, artigos indiferenciados, uma garagem automóvel, um mundo. Julgava que essa rua nunca mais acabava e que era a maior rua da cidade. Quan

A MINHA TIA

Ela costurava. Dia e noite, costurava sem parar. Costurava e sorria e dizia na sua maneira coisas bonitas e Amor. Fazia-o sempre que a visitava, devia continuar a fazê-lo mesmo quando eu não a visitava. Porque o fazia e parecia sempre feliz, quis imitá-la, também queria ser feliz. Comecei a escrever, por achar nessa idade ainda prematura para achar, que escrever era o que mais se aproximava a costurar, que poderia ter sido uma opção válida, mas escrever também não estava mal. Dei-me agora conta que está a passar na televisão o Natal dos Hospitais. E com esta imagem, em que temos estado descansados um do outro, ela emerge, toma conta da minha memória. Era o seu programa favorito do ano. Costurava sem pôr os olhos no ecrã pálido de cores fortes. Anunciava com segurança e sem erro os nomes dos artistas e cantarolava os seus êxitos. Eu, por ser miúdo e gostar dela, fazia deles os meus artistas favoritos, e como nunca tive jeito para cantar, e costurar parecia-me dificílimo ganhar o ritmo

O TORRÃO, PRINCIPES DE COISA NENHUMA

E seria um local belo se ela não tivesse de se levantar todos os dias da vida, as três e meia da manhã e passar o rio para a outra margem, quase um mar, e quatro transportes e correr sempre, para os apanhar, para apanhar com uma ponta dos dedos, sempre a escapar-lhe, uma existência miserável, não fosse a vontade de fazer crescer os netos-filhos do sufoco de uma existência assim, sem dignidade de cara lavada. Todos os dias, entre as seis e as nove para pôr a brilhar o chão da grande superfície, que lhe espreme as margens da subsistência, como faz ao produtor de batata, também desgraçado, vida dura a sua, para ganhar tostões. Podia ser um sítio belo de viver, se as crianças tivessem tectos onde não chovesse e boas janelas que impedissem as humidades e os frios a tomarem conta do espaço exíguo onde dormem tantos com tão pouco. E se houvesse água e electricidade e esgotos e as ruas não fossem pistas de lama e as crianças pudessem levar os sonhos até serem grandes, e tornar alguns ver

HÁ OU NÃO BALEIAS NO CÉU?

  Não há baleias no céu, ou então há, desde que se queira. Vira-se tudo ao avesso, sendo as mesmas quantidades de azul, passa-se o mar para o que está em cima e o céu para o que está em baixo. Quem não consegue imaginar um cenário destes, e acreditar na sua veracidade, é tolo, e nunca conseguirá dizer e ser credível, um poema simples e belo, tenha ou não a métrica certa. Nem a métrica o salva. Há, sim senhor, baleias que navegam nos céus e partilham o mesmo espaço de liberdade com todos os pássaros que venham por bem. Se não vierem, seja no céu ou em que meio for, o melhor é ficarem aquietados. Enquanto andamos nisto, passa neste preciso instante, não é mentira é a mais pura das verdades, estou a vê-lo, uma baleia voadora. No céu, à frente destes que a terra há de levar com pena minha, vejo-a a partir da janela do quarto onde tenho uma mesa em frente dela e escrevo coisas. E passa com a maior das bonomias, até parece que sorri, na comissura dos lábios enormes que tem. Afino a focag

DERVIXES RODOPIANTES

  Que nome dar a uma espécie de chapéu cónico, possivelmente em feltro, sangue de boi. Faz um efeito pouco comum mesmo que misturado anónimo, na multidão apressada num qualquer dia, numa qualquer rua central de uma cidade. Não só pelo que sobressai desse barrete hirto, que se vê uns bons centímetros acima do nível mais ou menos consistente das cabeças dos transeuntes, mas também por fazer um efeito incongruente, deslocado do sitio certo, sitio esse que se desconhece a morada. Em si, são dois chapéus, lado a lado e vão numa das direcções possíveis da rua, para baixo ou para cima, neste caso para baixo, rumo ao centro. Entram num edifício com uma fachada banal. No interior, pode ser tudo: escritórios, habitações, uma escola profissional, uma agremiação, um local de culto, sóbrio, sem pretensões de massas. Os dois homens que vestem os chapéus cónicos, estão de costas e dão a sensação de serem ainda jovens, pela forma como andam. Entram por uma porta não identificada. A porta preta, mate,

A ALDEIA DAS CASAS BRANCAS

  É uma casa em nada diferente das outras, poucas. Caiada a branco, as janelas e a porta com molduras amarelas. No espaço da porta, que em princípio é de madeira, está posta uma cortina de tiras de plástico de cores esbatidas. Protege dos insectos, também eles indolentes, subjugados pela intensidade do sol. Dentro, a sala, semi-escura, de paredes deslavadas, com a sujidade acumulada do tempo e das histórias a que assistiu ou não. Existe um balcão corrido a toda a largura da sala, em madeira, escurecida como a falta de luz suficiente que evita este espaço. Duas ou três mesas e cadeiras em fórmica. Atrás do balcão no que se pode chamar uma prateleira, copos para servir vinho e outros, pequenos, sinos, de bagaço. Uma máquina de café, uma peça histórica, já não funciona com certeza. Ainda atras do balcão, só visível a quem esteja encostado a este, uma pequena mesa forrada com uma toalha de plástico com flores, um candeeiro com fios de uma teia de aranha, um caderno com linhas, vazio, um l

QUANDO EU LIA PARA BORGES

  Ofereci a minha voz à sua cegueira. Laboriosamente, não contei os dias, li trechos, livros inteiros, da sua biblioteca pessoal. Todos os dias à mesma hora, não perdoava atrasos apesar de o dar a entender de uma forma muito britânica, a chegar a irritante, nesse polimento que se percebe tão bem que por trás, está um momento fervente de raiva, nos bastidores de uma figura impávida, a fazer-se desprendida nesse hábito por vezes tão exasperante de os britânicos se fazerem educados para os outros. Era o número seis, habitado por três humanos, um gato, e todo o universo compactado numa casa a meia luz, que dava a sensação de ter estado sempre ali, desde o princípio dos tempos, dando vida e morte e continuidade aquela família. Dona Leonor, mulher velhíssima a atingir os cem anos, a empregada igualmente velhíssima de toda a vida, uma gata branca ou preta, não cheguei a saber, e ele, impávido, com o seu fato de bom corte, escuro, risca de giz, sentado num sofá puído, o seu sofá, as mãos apo

O TIGRE DE BORGES

  Pe rdi a contagem do tempo em que estive prisioneiro naquela gruta insalubre cuja localização exacta não consigo identificar. Eu, um amante de mapas e cartas marítimas. Tudo aconteceu num ambiente estranho. Sonhos embrulhados noutros sonhos. Perde-se a noção do tempo e dos pontos cardeais. Sonhos obsessivos, intensos, imersão numa híper-realidade. Episódios diferentes, todos com o mesmo tema. Os nomes de Deus. Que nomes tem Deus? Li algures, há um tempo que não pus na cronologia das coisas importantes que assinalo nos cadernos, que se se conseguir fazer todas as conjugações de palavras de todos os idiomas que existiram, existem e virão a existir, chegaremos aos nomes de Deus, e ao pronunciá-los, abrimos os portais dos seus ouvidos, e poderemos falar com Ele, vindo a solucionar e resolver nessa conversa, todos os mistérios acumulados na memória dos homens. Muitos antes de mim, mais sábios, investigaram estas pistas, procuraram os nomes de Deus, que se podem encontrar em todos os la

A AVÓ ANALFABETA COMPROU UMA BIBLIOTECA E ESCOLHEU BEM

  Ela não sabia escrever, não quis aprender e mais tarde já não achou necessário. No entanto reconhecia a importância de saber ler e de escrever, mas não era para ela, e ria-se. Bastavam-lhe as palavras que vadeavam na sua cabeça e as que se escapavam para o espaço público nas conversas ou nos monólogos que fazia com os botões. Nunca folheou um livro, mas não tinha nada contra o objecto em si, que achava interessante. Revistas sim, via, porque têm fotografias e vendo-as podem-se imaginar histórias. Reconhecia o poder que se tem em saber ler um livro, ganha-se conhecimento das coisas. As coisas que ela conhecia chegavam-lhe para ser feliz. Sabia que para ele os livros eram muito importantes. E como ele era a substituição do filho morto prematuramente num país que só conhecia o nome , seu mais que tudo, investia as pequenas poupanças da gestão familiar apertada - apesar de analfabeta os números e as contas não a levavam por ingénua -, em livros, que ele escolhia na livraria do bairro e

O MEU TIO QUE ERA ANJO

  A ideia mais nítida que tenho dos anjos é uma fotografia de época: os meus avós, a minha mãe com uns lacinhos a rematarem os totós perfeitamente simétricos, e o meu tio, uns treze anos. O seu rosto irradiava uma luz que eu só posso qualificar de luz pura de um anjo. Depois dessa fotografia, nunca mais vi nenhum. Este meu tio, só estivemos juntos em carne e osso uma vez - apesar de ter sido o meu padrinho espiritual -, quando veio gozar férias da guerra colonial, à metrópole. Eu teria uns quatro anos. O seu rosto não aparece na memória desse episódio, só um passeio de carro eléctrico, um revisor com uma farda interessantíssima, o alicate pica-bilhetes, mais interessante ainda, e o bivaque militar do meu tio, fonte de toda a minha restante atenção. Se soubesse teria olhado para ele com detalhe, para o captar para mim, meu anjo: um bivaque e um alicate não mereciam essa transferência de interesse, mas uma criança tem os seus pontos fracos e eu claudiquei. Quando cumpriu a sua obrigaçã

O TIO NADADOR

  O meu tio, sempre que se aproximava de uma extensão de água maior do que uma poça, atirava-se a nadar. Aprendeu sozinho. No cais onde amaravam os hidroaviões da PAN AM, nos idos anos quarenta do século passado, mar da palha, que tem esse nome dizem os antigos por ser um mar raso e nos dias de sol intenso reflectir os seus raios dando a sensação de ser um mar da cor da palha. O tio aprendeu a nadar por erro e tentativa, no Beato. Teve sorte, a água que engoliu em vez do ar, não o asfixiou e ele, que era esperto e pensava bem, analisou racionalmente os erros, emendou os movimentos, a ponderação sem pânicos da respiração adequada, a flutuabilidade do corpo, que só se consegue com desprendimento, e, sem desistir, um dia deu-se conta que estava a nadar perfeitamente como se fosse um peixe sem barbatanas. Sem equívocos nem enganos. Como nunca fumou, nadava muito e tinha folego, tanto que se não fosse interrompido, nadava sem parar. Atravessou várias vezes esse rio, ou mar interior, até Alc

OS ALMEIDA MARQUES DA PARTE DA MÃE

  A sala de jantar, contígua à de estar e separada por um corredor da cozinha, tinha como mobiliário uma mesa e seis cadeiras de um estilo - se tinha estilo -, que não consigo identificar e mesmo nesse tempo de criança não posso dizer se eram bonitas ou feitas, o meu gosto não estava ainda feito para apreciar esse tipo de objectos. Havia também na sala um radio, objecto grande, em cima de uma mesa de apoio de pés altos, com o inevitável naperon . Para além destes objectos, havia uma moldura com uma fotografia a preto e branco, perdida na imensidão da parede branca e vazia, sem mais nada. Fotografia que marcava o centro geodésico do nosso universo familiar. A fotografia apresentava os meus avós maternos, o meu tio e a minha mãe, todos sorridentes e arranjados para a ocasião. Os sorrisos não são forçados, nem exagerados, pelo que deviam estar naturalmente bem-dispostos. Eram as pessoas mais importantes da família, assim como eu e o meu irmão, que não aparecíamos na fotografia porque quan

O MEU AVÔ ERA SENHOR DE UMA SELVA EM ALGÉS

  O meu avô prendia com corrente, por decisão sua e consciente, o nosso cão caçador Tôtu, farrusco que nem que disfarçasse muito poderia passar por cão aristocrata, na marquise fechada que dava para a sala de estar e de jantar. Era o seu shangri-la, a sua biosfera. Para além do Tôtu, residiam na marquise um periquito muito canoro, que esqueci o nome, e os vasos de plantas. Algumas floriam no seu tempo. Havia-as estéreis, mas o meu avô gostava delas. Não me lembro de ele plantar plantas aromáticas - talvez porque os nossos temperos se limitavam ao sal, à pimenta, ao colorau e ao louro, ingredientes que não se plantam sem mais nem menos, numa marquise em Algés – ou porque quis que o seu jardim fosse mais rebelde. O que não entendo é porque é que ele que tinha tantos livros das Seleções e outros, a ocuparem o lugar dos copos na cristaleira, sobre a natureza e os animais selvagens, e folheava-os, nunca teve a ideia de soltar o Tôtu e o periquito na marquise. Era pouca, mas era alguma liber

O SIMCA DO MEU AVÔ E MEU

  Não havia serviço de lavagem de carros. Quem tinha motorista era ele que os lavava e limpava, quem não tinha, arranjava-se, uns com mais outros com menos aprumo. Havia quem nunca lavasse os carros. Sempre houve e sempre haverá negacionistas. O meu avô que subiu à custa dos seus sapatos mas cansou-se no primeiro andar, teve o seu primeiro carro depois da reforma das ambulâncias postais. Não era bombeiro, era funcionário dos correios, e as ambulâncias postais eram vagões, geralmente na cauda dos comboios que descarregava e carregava o correio e as encomendas nas paragens e apeadeiros onde os comboios paravam. Reformou-se aos quarenta e sete anos e como arranjou logo um novo emprego de amanuense num escritório de despachantes de alfândega, comprou um carro. Antes teve de tirar a carta. Não praticou muito. Um Simca, um carro franco-italiano. Parecia um carro de estadista, era o único que tínhamos. O meu avô praticamente só andava de carro, no seu, aos domingos. Ou para irmos todos os da

OS MIRADOUROS ONDE ATRACAM BARCOS

  Antes da subida das águas que submergiram a cidade deixando somente os cumes suaves das colinas a descoberto, transformando-as em ilhotas flutuantes, casais de enamorados e mãos cheias de vontade de se darem, hipnotizados pelas ondas energéticas do amor que tudo pode, faziam juramentos de eternidade e companhia, encostados nos parapeitos dos muros dos miradouros enquanto debruçavam os seus olhos sonhando, nas panorâmicas da cidade. Olhavam para os telhados ocres, os zimbórios, as torres e a geometria das ruas e das praças. O mar deu-lhes um manto de água, afugou as cores. Onde foram jardins de belas vistas e tanto segredo segredado a acompanhar em sintonia o cicio do restolhar das folhas nas árvores em momentos de brisas suaves, são agora cais de amaragem, ancoradouros de pequenas barcaças de velas latinas e muita força de braços nos remos. Barcos que ligam as colinas-ilhotas. Sobrou desse fim do mundo, um punhado de gente, sem intenções de futuro. Sem nada mais para fazer senão

DESPERTAR

  Em que momento foi? Quando foi? Há memória disso? Quando deixaram de olhar para as meninas, como meninas, as da escola da dona Celeste, boa pessoa, quando vinham para o pátio, era o seu pátio, moravam no prédio, era deles, mas também era delas nos dias da semana, quando havia escola, a filipinha, adiantada para a idade, a saber coisas do seu corpo que as outras nem desconfiavam, e os rapazes, só pensavam na bola, dar chutos na bola, desconfortáveis com as meninas, elas a brincarem ao elástico, ao jogo do lenço, a fazerem coros e cantavam tão bem, e os rapazes a estragarem tudo, gritavam, atiravam a bola para elas, a sentirem-se afoitos, uns heróis aos olhos dos emperrados, os tímidos, há sempre destes, em todo o lado, elas a não acharem piada, desconsideravam-nos, e bem, a Filipa que tinha a despontar no seu corpo de menina, como as outras, uma transição, um fenómeno brusco, a nascerem e crescerem duas colinas de contornos cada vez mais evidentes, desenhados sobressaindo na camisa br

FIM DE SEMANA

  Percebemos que o tempo não conta a nosso favor quando começamos, com insistência, a receber telefonemas simpatiquíssimos, nem lhes demos o nosso número de telemóvel, convidando-nos para fazer gratuitamente um teste de audição, no dia e hora que quisermos, estão ao nosso inteiro dispor, e logo de seguida, ainda o auricular está quente da chamada anterior, uma companhia de seguros, centenária, dizem eles, nos oferece um seguro de saúde para toda a vida, sem período de carência, sem pagamentos de caução, com ou sem cancro, com a próstata inflamada ou rija que nem um pero saudável, e ainda estamos a digerir estas vantagens todas, a cabeça a andar à roda, é tudo bom, recebemos uma nova chamada, estamos na idade ideal, por isso nos contactam, para acautelar o futuro e se aderirmos já, a um plano de pagamentos por conta e suaves que nem se dá por eles, podemos vir a usufruir, quando for tempo disso, não há pressas, de um funeral digno de um estadista, de um político afamado, com fanfarra se

MANIPULADOR DE MARIONETAS

  * Encostados aos parapeitos das janelas, uns com a cabeça de fora, uns esticando a cabeça o mais que podem, pequenos, apoiando os queixos nos beirais para se aguentarem, uns mal se vendo os olhos, inchados de curiosidade, a saltarem das órbitras se puderem, ávidos para assistir ao que se passa, não vá caírem das banquetas onde equilibram os bicos dos pés, e perderem o lugar privilegiado. Todos a querer ver, ansiosos por serem os primeiros, para depois contarem aos outros que viram: estavam no local certo, à hora certa, a ver, são uns heróis. Ver a todo o custo e preço, mesmo que para isso se chegue à agressão, aos empurrões para desequilibrar os que estão no poleiro, e ocupar os seus lugares nos parapeitos das janelas. Querem assistir ao espectáculo, ao miserável entretenimento das misérias dos outros, uma projecção – que recusam a subscrever - das suas. E é tudo entretenimento, o que se passa na rua. Babam-se para assistir, serem meros espectadores, da vida a passar com os seus cort

A ILHA DE ÁCALA

  Homens e mulheres salgam peixe e fabricam garum , condimento apreciado. Cá fora, na orilha da água verde e pacífica, um areal dourado e seguro, duas crianças brincam com conchas e seixos, inventando mundos e utopias. Porque são crianças e brincam, estão abstraídas. No final da praia, pescadores curtidos, enrugados por sóis intensos dos dias passados assim, estão sentados nos passadiços do cais palafítico, reparam as redes. Partem logo, ao cair da noite. Está lua cheia, augúrio de boa pescaria. Alguém os visse no mar e seriam pirilampos, no efeito do piscar das velas de parafina batidas pelas brisas, que iluminam esparsamente as embarcações, ajudando as manobras, ou é para se sentirem mais seguros. Luz é vida,   Enquanto brincam, as crianças não sabem que do outro lado do mar feito do estuário de um rio, o sado, também há pequenas aldeias de pescadores e grandes produções de sal, a sementeira do mar. Na fábrica, que alimenta o império romano até aos seus confins e terra incógnita, a

O PARTO DIFÍCIL

  A mãe contava inapropriadamente, animada e não se poupando a arrebites - deixando-o embaraçado quando assistia, vá-se a saber as vezes que ela o contava sem a sua presença -, que o parto tinha sido difícil e de desfecho quase fatal, neste caso para ela, que assim tivesse acontecido não o poderia contar a ninguém e morreria com ela. Ela a encaminhar-se para o além esvaindo-se em sangue, ele sem respirar, muito tempo, arroxeado já, até que lá se deu autorização à vida, para aproveitar essa oportunidade, a de viver, uma lotaria que calha na conjugação dos astros e dos búzios, a poucos. Todos sobreviveram e a história acabou bem. Tenha que efeitos tivesse tido essa anoxia no seu futuro e em situações bem específicas em que precisava do oxigénio todo para decidir o melhor, a ideia atroz e muito injusta, de ter sido quase o responsável pelas perdas anormais de sangue da sua mãe, fizeram-no como se veio a fazer nem muito nem pouco encorpado, o suficiente. Do que não se livrou foi de uma t

CEREJAS

  As nuvens no verão são fiapos, algodão doce, e protegem os homens do sol, excessivo. O sol, energiza os corpos e bronzeia-os. Aumenta a estima pessoal. Os corpos aproveitam as condições postas à disposição, para serem felizes. A felicidade é um banho reparador e nem sempre está ao virar da esquina. Ninguém no seu juízo se encosta numa esquina a ver passar o tempo. Aguda, cortante. O tempo é um amante infiel, sempre com expectativas, que depois não cumpre. Como por exemplo, deixar passar, esgotando-o a olhar para as nuvens como se não houvesse mais nada para fazer. Em não havendo, instala-se a preguiça, meio caminho andado para se desatar a pensar nas nuvens, nos fiapos, na cor do céu, e pôr-se para trás das costas, o siso,   que juntamente com o bigode retorcido nas pontas, são sinal de respeitabilidade. O siso é de uma lúcida inutilidade quando se trata de fiapos de nuvens, mas olhar para o céu vale sobre tudo o que venham a dizer de nós.