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Mensagens

A mostrar mensagens de setembro, 2020

NOVELA RÚSTICA - MÁ NOTICIA

  António apaziguou. Caiu em si. O seu tempo de eternidade, de herói do Olimpo humano, esgotou-se, desvaneceu sem que se desse conta, algures numa data que marcou a sua transição de adolescente a adulto. De todos os sonhos e todas as possibilidades, reduziu-se a sobreviver, cumprindo pelas normas, as regras desse jogo absolutamente desinteressante e ansioso, de levar a vida por ondas calmas mas entediantes, até ao destino final. Uma vida sem glória, uma banalidade. Casou, procriou, trabalhou que nem um desgraçado; viu a mulher morrer prematuramente, continuou a trabalhar que nem a um cão se deseja; os filhos emigraram e fizeram novas vidas num novo país, um novo mundo - agora o deles - trabalhou ainda com menos energia mas ainda assim, um escravo; e deu de costados e o corpo por inteiro, em velho, a arrastar-se com o trabalho, o infindável trabalho, para a bucha, para se entreter – não tem mais nada com que se entreter -, até que morra, incógnito, anónimo, redundante, definitivamente

NOVELA RÚSTICA - O MANCHAS VAI SER PAI

  O Manchas vai ser pai. O António ainda não sabe e não tem como saber já que ele e o cão têm um problema de comunicação, e quando toca a puxar ao casmurro, cada um puxa mais. Vai ser uma surpresa. Foi a cadela da alemã que lhe deu a volta ao discernimento, pôs-lhe o aparelho hormonal e por sua vez, por ordem de acção directa, as extremidades em ebulição. Um destes recentes dias, andavam eles a pastorear nos escondidos de um vale profundo, o António pôs-se a marinar, depois da bucha e da bota abaixo, ressonando efusivamente. As cabras e as ovelhas ruminavam que não fazem na vida outra coisa, são bonitinhas, mas também não é para tanto: esgotarem uma existência quando é tão difícil cá chegar, para virem ruminar, é um desperdício. Enfim, elas saberão! Todos assim e o Manchas sem nada para se entreter, meteu-se no papel de cão farejador, a imitar ao perdigueiro – uma mania que ele tem - e deu de focinho com a cadela da alemã, que tal como a dona, ladrou de um modo estrangeiro que o

DO CONFINAMENTO - TENHO UM AMIGO MELRO

  Estou confinado a mim mesmo, não sei se aguento tanta intimidade. Julgo ter tudo preparado, vi e revi não sei quantas vezes as listas das necessidades, mas nunca vivi uma situação destas pelo que não sei quais são as necessidades. Fecho-me em casa, estou assustado, mas tento manter o decoro e a decência. Um sexagenário tem idade suficiente para ter decoro e decência, se bem não seja obrigatório e pode-se viver muito bem sem essas qualidades. Já vivi tempo suficiente, para ter adquirido um controlo decente sobre a minha cabeça. Mas nunca vivi isto, e o que mais desinquieta é o desconhecido. A escuridão é o que mais assusta e não tenho nenhuma lanterna à mão. Fui apanhado de surpresa, apesar de ver todos os dias as notícias na televisão. Acontece sempre aos outros, não a nós. Nós vemos as notícias, até que somos nós que aparecemos nos jornais, e não estávamos à espera de nos defrontarmos com a nossa cara de espanto. Até já tenho medo de respirar, mas se não o fizer morro, pelo

NOVELA RÚSTICA- FESTAS DO VERÃO

  As festas da aldeia são no mês de Agosto. Apesar de só contar com dois habitantes no activo, dois canídeos mal-humorados, um pássaro, que era pássara e fugiu com o namorado, um rebanho curto de cabeças, e um ror de fantasmas (que se calcula que existam) que não se veem e daí não os podermos contar, vem sempre alguém de fora para compor a festa – o selo na testa certamente -, alguns poucos emigrantes na Suíça e na França; a autoridade eclesiástica para dirigir a procissão de uma dúzia mal medida de almas quase penadas; a autoridade civil, o Presidente da Junta, na visita anual que faz à aldeia; e por fim que vai cansativa a enumeração de presenças, a autoridade militar, no corpo e na pele do primeiro cabo Adalberto Campos, em fatiota de gala, com galonas verdes porque não foi mais longe, montado numa esplêndida motorizada de muita cilindrada e com luzes pisca-pisca azuis e uma buzina a entoar cânticos celestinos (desafinados e estridentes é certo, mas ainda assim, de uma dimensão sinf

NOVELA RÚSTICA - XICA, A CHAPIM AZUL

  A Xica é um chapim-azul. Contingências da sua vida viu-se abandonada pela progenitora quando ainda não sabia voar. Percebendo que a mãe não viria mais, num acto suicida mas de muita coragem, abeirou-se do ninho, fechou os olhos que ainda mal abriam, respirou fundo, susteve o pouco ar que lhe cabia nos pulmões e atirou-se para o desconhecido. Por atavismos próprios bateu freneticamente as asas, mas ainda não as tinha. Ou melhor, ainda não as tinha suficientemente formadas e fortes para a susterem e poder voar. A Chapim-azul veio a cair redonda aos pés da árvore e por sorte dos dados da natureza, sobreviveu. Sobreviveu ferida e frágil. Incapacitada de se deslocar, piou em pedido de socorro. O Quim era um caçador exímio, mas era um caçador com princípios. Não matava por matar, respeitava a natureza. No caminho que naquele dia o levou por ali, viu a pequena Chapim-azul e por compaixão, ajoelhou-se, pousou a arma no tronco da árvore, e gentilmente, com uma sensibilidade que não se lhe c