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SOFÁ





 

Nos cenários do impossível, tudo é possível. Existe, não existe. Foca, desfoca. Inventa-se. Cria-se. Estou sentado no velho sofá companheiro de inúmeras aventuras e descobrimentos. Juntos participamos felicidades e tristezas. Meu confidente, onde sonhei futuros, tricotei ilusões, ancorei catadupas de pensamentos uns estéreis outros não, tomei decisões, umas boas outras poderiam ser melhores, foram as melhores que tomei. Estou envolto nele a deambular nestas coisas e dá-me vontade de atravessar o estreito de Magalhães. Cá vamos nós, o sofá nunca se recusa! Saio do meu conforto sem sair, vou eu e ele directamente para tempestades que metem medo, vendavais de levantar as fundações das casas e dos seres,  e outras intempéries, imerso na leitura de um livro de um chileno que  escreveu sobre os mares do fim do mundo, terras setentrionais, de gentes poucas, duras, solitárias. Num piscar de segundo, sou marinheiro, faço parte do livro, mais, vivo dentro do livro, personagem novo. Estou no cesto da gávea, de olhos postos no horizonte, muito atento e apesar do nevoeiro sólido que tudo envolve, tento ver a ponta de um icebergue ou a presença de outro navio. Sou o guardião do meu barco, protejo-o de impactos fatais. Andamos à caça das baleias, elas andam à caça de nós. Agora estamos em terra, frias, ríspidas paisagens de pedra, arbustos baixos, poucas árvores, mal vingam açoitadas por ventos constantes e fortes. Sou um gaúcho na Terra do Fogo, acompanhado pela minha montada, minha fidelíssima montada tão selvagem como eu. Cavalgamos dias e noites, sem sinais de gentes, nem de nada, pastoreando gado, quase espectros nós e ele, sem norte nem beira, sempre em movimento. Volto a mim, à realidade que constitui o meu contorno e o do sofá, e descanso dessa viagem que acabo de fazer. Deixo boas recordações, armazeno-as com delicadeza nas memórias. Alimento um profundo amor por esses, todos, os territórios, patriótico de todos, é sempre assim, para onde vou, volto com saudades de expatriado. Agora durmo, descanso, intermitentemente, é assim que durmo. A vida é pouca para se dormir, aproveito tudo. Acordo com uma vontade inquestionável de ser pastor de ovelhas nos confins das ilhas Hébridas. Levanto-me, dirijo-me à estante e pego num livro, lido e relido, decorado. De novo em trânsito, de um lado para o outro, acabado de pousar os pés e o corpo e o meu pensamento de homem curioso, numa ilha isolada, uma míngua de gentes, abundante de ovelhas, levada a ventos e sibilos, sussurros de fantasmas, espíritos do lugar, que assustam quando à noite nos sentamos em frente a uma lareira alimentada a chamas de turfa, não há árvores. Traço em pensamento o panorama do dia que vivi e as perspectivas de amanhã andar ocupado e pastor, pastoreando as melhores lãs do mundo. Estas ilhas de pouca gente, quase vitoriana, não na simpatia intrínseca deste punhado de gente mas na forma rigorosa como vivem, contentam-se com pouco. Não sou um homem taciturno. Gosto de cenários frios e inóspitos, mas aprecio igualmente a bonomia de tempo caloroso, radiante, um céu limpo, ingenuamente azul. Flutuo o olhar nos intermináveis campos de alfazema, que formam ondas de uma sensualidade que se pode dizer assim, apimentada pelo sopro do siroco. Anestesia-nos, vicia, queremos continuar para sempre neste estado. Estamos nos doces campos da Provença, onde o silêncio é uma pastoral cantada por mil e um pássaros, efusivas criaturas belas, indispensáveis à vida, sem eles não seriamos homens assim, como não seriamos sem as flores onde estes bicam os doces néctares. E o zumbido das abelhas, o que dizer do zumbido das abelhas, elas e as formigas, as grandes obreiras, sem descanso, semeadoras de fauna em terras férteis e outras, transportam consigo as sementes da vida, depositam-nas para que vinguem e produzam assim de novo e de novo, o absolutamente deslumbrante espectáculo da natureza em renovação permanente. Sou provençal, tenho um chapéu de palha com aba larga e um certo estilo, e sentado no pátio da minha casa com portadas em ripas de madeira pintadas de cor turquesa, assisto a tudo isto, e emociono-me levemente. Tomo uma bebida anisada e fresca e debato filosoficamente sobre coisas simples e pouco elaboradas, num francês solto, o que me espanta mas ao mesmo tempo me agrada, não tenho por hábito falar num francês solto. O meu anfitrião, homem do lugar, gosta de debater coisas filosóficas e eu faço-lhe a vontade, numa conversa que se prolonga num tempo que se perde a conta, até esgotarmos o assunto e a garrafa. Deixamo-nos os dois ficar por ali, não temos para onde ir e nem merecia o esforço. Acabadas as palavras, pousamos a atenção na acalmia do cenário.Volto a casa, ao sofá. Mais um dia, cai agora a luz com suavidade e polidez. Vem o crepúsculo, o momento da melancolia. Imagino-me a fumar um cigarro sem querermos nem ele nem eu que as volutas sensuais de fumo que exalo e que ele consome, tenham fim. Termos a chave de parar o tempo e ficamos por ali, numa eternidade definida por nós, ao fim de um dia, meio obscuro, prestes a entrarmos nas sombras, no prazer indizível que dá fumar um cigarro imaginário. Esses momentos são os melhores para ficar ancorado ao sofá. Pôr de lado as grandes cavalgadas pelas estepes da Mongólia, prescindir do balancear trôpego do camelo num deserto das arábias, abdicar de uma escalada abrupta ao Anapurna. É o tempo não-tempo para uma visão de observador exterior a nós, a observar-nos na posição privilegiada que o distanciamento oferece. Se ainda me apetecer, no período do lusco-fusco, dou um salto a Veneza. Não às gôndolas a que não acho piada, mas a uma qualquer esplanada, afastada dos magotes, disposta na margem de um qualquer canal secundário, local livre dos sons histéricos dos turistas linha branca. Nessa esplanada tomo uma bebida da região, um Martini quer gosto, e deixo-me aquietado a admirar com reconhecimento a harmonia do local e penso, ainda que de relance, que gostaria de ser veneziano. Depois tudo o que temos vivido, eu e o meu sofá, estou disposto em mimar o acolhimento que me dá e continuarmos juntos até ao fim dos dois: o meu porque desapareço de cena, o dele, porque deixa de ser meu e passa a ser outro sofá. Cai agora a noite e não voltamos um para o outro, descansamos, dou-lhe tempo a que se recomponha, e eu, deitado noutro afago confortável do meu mobiliário pessoal, continuo a sonhar, a realizar invenções do mundo, só minhas e íntimas, pequenas histórias que ajudam o tempo a passar. Nas horas nocturnas, quando está escuro e tudo se torna muito sério, o tempo passa vagarosamente. Parece que ele próprio se dá a si tempo, para robustecer a vontade de irromper amanhã em todo o esplendor, quando em principio e nada indica o contrário, o sol de nasce de novo e cremos todos, que o novo dia é a mimetização conseguida do desejo de que seja pleno. Cada um tem os seus sonhos e viagens por realizar. Eu, viajo acompanhado pelo meu sofá, no entanto nunca saímos do perímetro da sala na companhia um do outro.


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