«C`um caneco», diz a rã a coaxar, saltando em esforço sobre o
alcatrão escaldante da estradeca. Até que chegue ao outro lado, bem tem que
vociferar.
Uma lontra, aos seus afazeres, caminhando nos vagares da
região, investida de toda a calma do mundo – pressas para quê, se vamos todos
morrer. A lontra passa diante de nós, quatro, cinco metros, omite-nos, a
curiosidade dela não é mútua.
Uma águia-calçada, ou pequena, ainda assim águia, descreve
círculos, planando. Espera pela sua oportunidade e não vai falhar.
Não é comum ver uma rã – na cidade –, águias só domesticadas,
tristes figuras em estádios, lontras é mesmo impossível.
Quem diz rã, águia e lontra, diz coelhos, são muitos. Assustadiços,
disfarçam-se com a nossa presença de coelhos-pedra, congelados, estátuas, e
quando não aguentam mais, porque os coelhos são de natureza inquieta, dão
grandes saltos disparando em velocidade furiosa a esconderem-se nos silvados.
Há também cobras, que não se desviam da rota, presumidas,
seguem o seu destino sabendo que todos temos medos delas. A passarada é inúmera
e interventiva: fartam-se de tagarelar, todo o dia nisto. No lago artificial
criado pela barragem, saltitam peixes que se adivinham enormes.
É assim na barragem de Odivelas, no Concelho de Ferreira do
Alentejo, um lugar de sossego. O Parque de Campismo Markádia, que também tem
casas para alugar, é um segredo bem guardado, para os amantes de prazeres
primordiais.
Quanto não vale um despertar a diluir a reminiscência dos
sonhos da noite na água do lago, que reflecte referências de verdes e azuis,
acompanhados pelos sons da passarada a ensaiar as suas óperas preferidas?
Fora do parque, interrompendo a paisagem alentejana, a beleza caiada, puríssima, das casas, juntinhas em pequenas aldeias ausentes de ruídos, absorvidos pela densidade dos calores do sol a pique, são na terra dos homens, a réplica das casas dos anjos. E as igrejas, simples, parecem catedrais, não pela imponência mas por serem simples e não terem outras ambições.
Se nos apetecer
sair do parque, logo ao perto, a aldeia de Odivelas, assente num pequeno morro
e nos bicos dos seus pés a armar-se em serra com altura podem ver-se até ao
longe da planície, terras de azeites e vinhos, e o lago que parece um pequeno
mar.
Depois é ir na direcção que se queira, ou na que se vai ao
acaso. Torrão, Alvito, Vila Nova da Baronia, Viana do Alentejo, Cuba…
Na ciência da toponímia há nomes que terão as suas razões, mas que soam estranhos. Albergaria dos Fusos é desse gabarito. No alinhamento Vila Alva e Vila Ruiva, nomes que se compreendem e vestem bem. Mas, Albergaria dos Fusos? Soou-nos aos ouvidos que em tempos romanos existiu uma Albergaria para acolher os viajantes da estrada que ligava Évora a Beja. Também terá existido uma pequena fiação, ou um tear, e vai daí, junta-se um nome a outro em casamento e vão de núpcias.
Há muito que os donos da Albergaria desapareceram,
mas existe o Café a Mó, que não oferecendo enxerga para descansos e sestas, providencia
refrigério de boca, pois que percorrer as infindas estradas rectas desta parte
do país, cansa a vista, a atenção, e aguça o apetite, o que não é uma verdade,
não tem nenhuma relação lógica, mas há demagogias bem piores e aceitamos.
Andando mascarados - continuamos mascarados-, custa não ver
caras, para adivinhar os corações. Dificulta o juízo. Nessas condições, não
ideais, conhecemos a Dona Cidália e o Manuel António, grandes anfitriões que
oferecem o melhor de si: aquela sedução hipnotizadora, alentejana, de receber
as pessoas, oferecendo amizade nas primeiras impressões.
A encomenda foi feita na véspera, por telefone. Nas
possibilidades de um cardápio gastronómico feito de poucos ingredientes, do
pão, do azeite, do alho, das ervas de cheiro e paladar e do incontornável porco
seja preto seja branco, faça-se a escolha: a Dona Cidália confecciona. Comemos e
não temos mais a dizer, não há mais a dizer: não há palavras que se aproximem
da sensação dos odores, dos paladares, do aspecto destes pratos descomprometidos
e únicos. Só comendo, e foi o que se fez, pagando pouco e levando de volta ao
acampamento, a certeza de que afinal, a felicidade existe e é quase gratuita.
De volta ao Markádia a
tempo de marcar lugar panorâmico para o momento solene do pôr-do-sol. Nos
fogachos de tempo de um lusco-fusco, o céu cintilou de cores fortes: amarelos, laranja,
vermelho-vivo, roxos, uma luminotecnia a fazer-nos pequenos, no espectáculo de
uma natureza que maltratamos mas que ausente de noções do bem e do mal, oferece
as suas obras-primas, esbofeteando-nos com luvas de pelica, esperançosa que
despertemos de vez para a cuidar.
Lindo!
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