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A REDUNDÂNCIA DO TEMPO




Passaram dez anos desde que se suspendeu a contagem do tempo. O tempo deixou de ter sentido. O futuro perdeu todo o interesse, previsível, aborrecido, para quê continuar a contar o tempo se ele não nos leva a lado nenhum. Fechámo-nos, todos os que podemos, em casa. Os que andam na rua, são os novos escravos. Os que têm que estar na rua para que isto continue. Muitos deles pagam com a vida, pagam com a subtracção dela, mas não têm escolha. Eles morrem para que nós, os que estamos em casa, continuemos a viver. Num tédio destes, para quê continuar a contar o tempo. Não vale a pena.

Este mês seria o mês dos santos que o povo gosta, mas com a peste, todos os santos fugiram. Foram para o paraíso, onde estão seguros, protegidos de nós. São momentos assim que nos dão a ver o que antes não víamos: a importância de algumas coisas, a redundância de outras.

Sem santos, a sardinha deixou de fazer sentido, é um peixe como qualquer outro. Os manjericos são inúteis. As noivas e os noivos passaram a casar-se pelo registo civil. As igrejas confinaram.

Os homens deixaram de contar com o seu ponto de fuga: o céu. Caíram em si, contam com eles próprios, nada mais. A vida simplificou-se a ponto de não haver expectativas sobre nada. Acontece o que acontece, e passa.

No início da peste as pessoas ficaram tristes, depois habituaram-se. As pessoas habituam-se a tudo e tudo acabam por esquecer, ou perdoar, ou fingir que o fazem para não serem incomodadas pelas suas consciências e pelas dos outros. Divergiram as suas atenções para coisas mais primordiais: a sobrevivência. Pouco mais do que isso, manter-se vivo fora do tempo, que se excluiu da nova equação.

Dentro de suas casas, os privilegiados, ocupam-se com coisas banais. Alguns mesmo passam todo o dia estendidos a olharem vagamente para o tecto, numa espécie de nova meditação, sem propósito. Ou então é mesmo isso, acabaram por descobrir o grande mistério dos estados meditativos: a ausência de propósito.

A banalização da notícia, sempre a mesma, repetida mil e uma vezes, levou ao seu abandono. Os homens já não vêem, nem ouvem, nem lêem as notícias. Fartaram-se delas. Somente os políticos e os jornalistas mantêm esse circuito fechado: continuam a alimentar-se mutuamente, mas estão e não o sabem, todos encerrados em redomas de vidro e não saem delas. É a sua realidade. Impõem coisas estapafúrdias às pessoas, porque continuam a deter o poder e são sádicos. Eles e investidores anónimos.

As redes sociais ocuparam o espaço deixado vazio e são agora o imenso miasma onde tudo flutua, o bom e o mau, avaliações estas que os homens deixaram igualmente de fazer, porque com a peste, perderam-se as esperanças na ética e na moral.

As crianças habituadas desde que nascem aos seus brinquedos electrónicos continuam a ser felizes. Tanto lhes dá estarem em casa ou na rua, desde que tenham os seus ecrãs disponíveis e com bateria. Em casa até estão melhor porque não se distraem com estímulos externos. Os velhos foram todos depositados em armazéns até que morram. Estamos todos proibidos de acariciarmos os velhos, de cuidarmos dos velhos, e os velhos não percebem porquê, porque lhes fizeram esta desfeita quando foi deles a oportunidade para estarmos aqui.

Na realidade, nem se sabe se ainda há peste ou não. Pouco importa. A vida antes dela também não levava a nada. Estávamos a destruir tudo onde tocávamos. Somos predadores implacáveis. Desconhecemos o significado do arrependimento e se há uma característica – duas vá – que nos distingue é o egoísmo, a avidez.

Em tudo o mundo ficou diferente e desleixado.


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