Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

A mostrar mensagens de 2020

ROSTOS DO AMOR

  Esta história de amor não começou bem mas também não começou mal. No amor como noutros assuntos sérios não há cânones nem “guiões de visita”. Conheceram-se casualmente. No emprego. Os empregos das pessoas são uma fonte inesgotável de conhecimentos. A princípio tinham uma relação formal, profissional digamos. Se algum traço emocional, uma ligeiríssima pincelada, havia, resumia-se ao cumprimento da manhã e a despedida de fim de dia. Depois disso, cada um desligava-se do outro e seguiam independentemente ao que os esperava fora daquele ambiente. No entanto estas coisas são como as cerejas que não se param de comer quando são boas, e eles nos intervalos do trabalho enfadonho e burocrático começaram a falar sobre si e por aí vão sempre as coisas, até que inadvertidamente ou não, se acende a chama da curiosidade e daí a atear-se um fogo sem controlo, vai um fósforo, como se diz popularmente. Falaram e falaram até que começaram a falar com intenção. Nesse momento quem está atento, percebe l

DA BELEZA DOS FLAMINGOS

  O belo voo do flamingo e a graciosa forma como saltita as suas pernilongas no delta de águas pouco profundas e tépidas do rio, que classe. No inúmero reino das aves ganha destaque na sua finura, no porte, na forma tão educada como se apresenta perante a plateia do mundo. É nesta ave educada que podemos confiar. No convívio com as outras espécies e famílias, é amistosa, não alimenta conflitos desnecessários e dada a sua absoluta falta de ambição – não tem outros desejos senão ser flamingo – não apresenta ameaça para os outros. O flamingo preenche a sua ideia de felicidade e realização, nos chapais calmos dos rios. As inimizades que se lhe conhecem são os aviões, que não sendo aves, são uma imitação de  produtos compósitos. Seres de uma propositada frieza metálica, ausentes de qualquer tipo de sentimento e muito arrogantes, creem-se os soberanos dos céus e como são cretinos, pela sua falta de discernimento vão acabar por ganhar o território dos céus , porque os cretinos juntam-se mais

A FELICIDADE DAS PEDRAS

  As ondas suaves cristalinas estendiam-se a seus pés e nem dava contas certas da boa fortuna, da alegria de poder estar neste local, esta praia que é uma ideia, entre outras igualmente genuínas, quem sabe ingénuas, que faz do paraíso. Está sozinho, acompanhado de si, suficiente, a fazer este pensamento e outros que pensou antes como os que se lhe seguirão. Algo de muito forte que desconhece, atrai-o nas pedras. Da praia e outras. Por isso coleciona-as e sente-se feliz por ter esse gosto. Dá-lhes habitação em tudo quanto é sítio: no chão da sala, numa prateleira emoldurada com livros, como pisa-papéis sejam eles quais forem, de cozinha, de quarto de banho, de escrivaninha. Pode parecer estranho, mas sente-se acompanhado pelas pedras. Não se cansa de as olhar e tocar. Elas retribuem. As ondas suaves e cristalinas massajavam-lhe suavemente os pés, transmitindo, num processo em cadeia, uma sensação de grande bem-estar. Mais do que isso: de realização. Nestes pequenos prazeres: um passeio

VIDA SECRETA DAS PLANTAS

  As plantas dão-se bem umas com as outras porque não se invejam. Não têm nada para invejar. Entre si, não sabem que são bonitas, umas mais que outras, nada disso, dão-se aos seus brilhos sem ofuscar ninguém. As plantas só não gostam de se ver dispostas em jarros, porque isso significa que as separaram violentamente das suas raízes, e estão por um fio, ou seja, mais hora menos hora, morrem. Ao contrário do que se possa pensar, nem mesmo os minerais, nenhum ser gosta de morrer, ou pelo menos, estar à beira disso. É claro que os homens, que são quem afasta as plantas das suas raízes, tentam por todos os meios ao seu alcance, mantê-las viçosas quando as colocam em jarros, mas não sabem, porque não entendem nada de plantas, nem mesmo de si mesmos, que a frescura de uma planta está nos olhos de quem a disfruta. Isso, só as plantas e os incondicionais apaixonados o sabem. E não andam por aí a revelar aos outros, porque reside no recato de poucos o segredo bem guardado da beleza absoluta das

ESTÁTUA

  Uma estátua. Impávida como as estátuas sabem ser. Dão todos os sinais de ausência de vida, mas por vezes enganam. Há estátuas para as quais nunca olhamos e outras que não conseguimos afastar os olhos. Magnetismo sem explicação. As estátuas não têm substância e por isso tantos as desconsideram. A mulher tinha substância e podia ter sido estátua se tivesse calhado ser, à saída da bola na tômbola onde rolam as coisas e seres em potência de virem um dia a ser. Ela, ao lado da porta de uma conhecida loja de marca, fazia pender com a ponta dos dedos uma folha colada a várias outras folhas, para virem a ser maiores do que uma só. Na folha, explica por letra sua, ser uma artista sem trabalho. Ao lado, num recipiente pequeno mas suficiente, pequenas andorinha pregadeiras de belas cores e conjugações de distintos tecidos. Uma, à escolha, por uma moeda. Uma qualquer, não importa. Poucos leem a folha porque têm vergonha ou de si, ou dela, ou de ambos, ao ponto a que nos deixámos chegar. Recebe m

AMARRAS

  ** Um prisioneiro com algemas invisíveis. Na casa que comprou, a pagá-la toda a vida, um calvário. Agora, a casa a fazer-lhe uma destas. Asfixiava. Tinha a chave da porta, podia sair, podia entrar. O que importa isso se tinha uma barreira moral. Sim, moral. Não saia pelos outros e por si. Os outros também o deixaram de visitar. Seria por eles e por si. Uma confusão e um dilema. Aquela casa que nem sequer estava bem localizada, nem era particularmente confortável, que lhe custou uma verdadeira fortuna, era melhor nem fazer as somas todas, emparedou-o na fase da sua vida em que ele estava a sentir-se melhor no exercício muito difícil de alimentar uma boa conversa. Anos investidos nisso, aprimorar e limar arestas e agora que se sentia um tribuno, gostando de se ouvir, não tinha com quem falar. Para as paredes que não lhe respondiam, ingratas, o que ele investiu nelas. Tinha uma colecção antes feita de selos. Pôs-se a escrever postais. Todos os dias depositava-os num marco do correio, em

O VOO

  Por sortes ou azares, ou coincidências, ou simplesmente porque foi assim, ele cresceu a deliciar-se com o voo picado dos falcões peregrinos. Como em pequeno tudo se imita, imitou o voo destes, alucinadamente letal. Tanto praticou que conseguiu uma imitação aproximada. Os falcões ficaram curiosos, depois omitiram porque tinham mais que fazer, que é procurar a continuação da sua vida na morte dos outros. Caçando portanto. Ele é um Abelharuco, pássaro lindíssimo mas humilde no tamanho. Convenceu-se que era uma ave de rapina mas nem sequer come carne, é completamente vegetariano. Os seus perdoam-lhe. Quem nos ama perdoa tudo. Foi fruto do encadeado de acontecimentos que lhe sopraram a vida. Não se pode ser tudo o que se quer ser mas há quem se convença do contrário

Contos pequeníssimos - DECISÕES PESSOAIS

  Numa noite que se antecipou ao final do dia, prometendo medos, ele saiu de casa, bateu com a porta porque era uma acção simbólica. Nunca mais voltou. Saiu com as mãos nos bolsos, foi visto assim, como se fosse desinteressado. Seguiu caminho, não olhou para trás uma única vez. Antes de sair teve a sua conversa definitiva e clara com o passado. Disse-lhe nos olhos que ia pelo futuro. O passado nem esboçou detê-lo nessa decisão, compreendia. Para ele não havia futuro se não se livrasse do passado. Há de tudo. Há quem leve a poeira aos ombros, há quem vá desanuviado. O que seria este homem se tivesse ficado. Nunca o saberemos. Entretanto, na direcção oposta, um outro homem, vindo esbaforido parece que do seu futuro, retrocede a correr, desalmado homem, confiante de que o passado ainda esteja á sua espera. Esteja ou não, vai lesto. É no movimento que está a vida.

DIA CINZENTO

  Dá-me a mão. Que bom. Falta isso, dar as mãos. Passearmos pelos jardins o desassossego das nossas inquietudes.  A tua e a minha mão, enamoradas, uma só, a aliança do amor. Por essa razão inequívoca, devemos entrelaçá-las com a força sobre-humana, que humanamente somos. Porque sim, é amor. A união mais poderosa que jamais conseguiremos: duas mãos dadas. Assim, ficamos senhores da realização plena do amor nos instantes efémeros em que apertamos, com a mesma intenção, a tua, a minha mão, os melhores momentos de os passarmos juntos, amor que  não sei como o saberes por mim, senão dar-te fortemente a mão, oferecendo-te a minha.

REENCONTRO

  No afã de nos vermos que era uma ocasião usufruída e gostosa; no sufoco dos abraços, beijos, conexões do meu corpo com o teu e do teu com o meu, vontade correspondida;   na urgência que tínhamos definida de lançarmos palavras redondas e doces um ao outro; na necessidade, sim isso mesmo, de marcarmos para o reencontro, hora certa em todos os momentos que nos eram possíveis; em toda essa maré cheia de sensações, arremessos de amor e desejo; tatuagens pigmentadas em tons fortes nas nossas almas, cicerones de nós; em toda esta maré alterada em que nos encontramos, não deixaremos de desfiar o fio de Ariadne, que nos guiará um ao outro, no momento em que esta tempestade incongruente passar, e num céu novamente rasgado, como se fosse o primeiro céu do mundo, e na amplitude de todas as possibilidades, assistiremos ao nosso reencontro, embevecidos e apaixonados, como se nos tivéssemos a ver pela primeira vez. E estaremos.

CARTÓGRAFO DO DESCONHECIDO

  Despertou cedo, foi passear. Vestiu roupa simples e cómoda, calçou umas sapatilhas afeiçoadas aos pés, fechou a porta delicadamente para não incomodar os objectos que repousavam na réstia silenciosa de noite que ainda fazia escuro. Quando fechou a porta de casa e deixou para trás a do prédio, alisou-se à sua frente uma passadeira vermelha, imaginária, ou talvez real. Encheu-se pleno de si, o pé direito fez o primeiro gesto, andou, um passo, desafiou o parceiro do lado. Estava um tempo agradável, nem frio nem calor, ideal para grandes caminhadas. Ciciava uma aragem apenas detectável, propicia. Os primeiros passos, comedidos e lentos, estimulados pela perspectiva de um excelente passeio, cedo se ficaram afoitos. Aumentaram o ritmo. Assim foi andando. O caminho que ele não escolheu, foi escolhido, apresentou-lhe novas possibilidades, escolhas, inúmeras ramificações oferecidas, como árvore desenhada no chão, e ele confiante, aceitou, decidindo naturalmente a direcção das encruz

FUNCIONÁRIA PÚBLICA EXEMPLAR

  É uma só pasta, das grandes, a lombada. Suporta muitas folhas, centenas talvez, também separadores. Agora são precisamente nove horas e quarenta minutos, de um dia de semana. Às nove horas e dez minutos, arredondando, um ligeiríssimo atraso que não se dá conta, ela entra no edifício e cumprimenta a menina Albertina. Na sua carreira fidelíssima ao Estado, a menina Albertina conheceu dois postos de trabalho: Porteira e Assistente Operacional de Recepção. Veio trabalhar para o Instituto, uma gaiata, com tranças e laçarotes e tudo. O seu pai fazia uns favores ao Senhor Doutor. Informações e isso. Pediu-lhe emprego para a filha e este aceitou-a. Uma mais no meio de tantas afilhadas que tinha. Praticar o Bem, o que ele fazia. Albertina perdeu as tranças com laçarotes, endureceu de feições e não casou. Tendo a escassa família vindo a desaparecer por causa naturais e pela lei da vida e das precedências, ficou sozinha. O Instituto é a sua família. Falam as duas sobre coisas do quotidiano,

NÓMADAS URBANOS - AMOLADOR

  O amolador ao nascer do dia sai do local onde vive que não se sabe onde é porque ninguém sabe onde vivem os amoladores, e na sua bicicleta amoladora percorre com uma paciência de pastor de um rebanho imaginário, as ruas e as vielas das localidades, grandes ou pequenas. Todos os amoladores foram pastores nas suas terras de origem o que não é verdade, mas fica bem para esta história. A única coisa que os compara é a solidão dos dias que passam e o estado de permanente movimento: uns por vales e montes acompanhando as alimárias que não falam e não se cruzando com ninguém de senso, outros anunciando a sua presença com uma melodia simples tocada numa flauta de amolador, sempre a mesma, coisa-música encantatória, e recebendo de mãos silenciosas na porta de prédios anónimos o seu trabalho de afiar. Os amoladores são nómadas e os pastores igualmente. Nómadas com código postal. Não só se comparam na solidão que ambos vivem, como noutras coisas mais banais: como praticarem profissões i

DO PODER - REVISITAÇÃO

  Nesta pluralidade que é a natureza, nesta obra dos acasos ou de causas superiores insondáveis, há seres cuja beleza cativa o mundo. A beleza é o argumento mais forte do poder. Dança à sua volta, danças do ventre, sensuais, húmidas, viciantes. Sabe rodear o poder, tecer a sua teia invisível mas inquebrável, ata de mãos e pés, imobiliza, inteiramente hipnotizados por essa dança rude, primordial.   Perante a força irracional que irrompe de uma obra sinfónica, para se elevar a um exemplo de beleza superior, o homem baixa as defesas, entrega a sua sorte no embalo da música, extasiando-se, deixando-se fluir por essa torrente de emoções.   Os efeitos da mistura explosiva, do casamento da beleza com o poder leva os seres a atitudes que não se alcança imaginar, coisas que não estão na lógica das coisas. Práticas do bem e do mal, sem noção, do bem e do mal, coisa subjectiva que leva a equilíbrios de funambulista.   O aparecimento fugaz de um tigre listrado, meio visto, meio escon