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CRIANÇAS DÃO-SE BEM COM POLÍTICA






Na irrequieta preocupação sobre amanhã, o mundo de uns anda absorto noutras coisas.
As crianças gritam, mal se ouvem, sobrepõe-se o ruído dos carros e as buzinas.
Na inquietação que perturba, andam muitos ocupados fingindo que nada está a acontecer.
Crianças berram, daqui a nada estão de castigo.
No desassossego, políticos dizem que foram os primeiros a falar nisso,
Fazem chinfrim.
As crianças, desordenadamente mas todas, começam a tocar indiferenciadamente as campainhas das portas. Pedem atenção.
Alguém chama policias para policiarem todas as campainhas das portas. Faltam.
Algumas continuam a tocar sem interrupção.
Politicos ajudados por votantes adormecidos por vales de benefícios materiais míseros, dizem que o mundo amanhã vai ser muito melhor.
Asseguram a sua protecção, fazendo figas debaixo da mesa.
Crianças que não veem nem ouvem as notícias dos jornais, mijam todas ao mesmo tempo e cagam as fraldas e as cuecas.
Os sistemas educativos não têm resposta.
É um problema sanitário, mas dada a descapitalização necessária, este já não resolve problema nenhum a ninguém.
Políticos falam do crescimento económico.
As crianças não param de defecar, agora já na via pública. E gritam.
Os polícias são mandados a bater nas crianças e fazem-no afincadamente.
Precisam mostrar trabalho e serem finalmente reconhecidos. Aumentados.
Políticos, jornalistas e juízes, dizem que se vão rebelar contra o sistema.
Os pais das crianças cagonas, desligam os televisores e as rádios para estas não ouvirem.
Como era esperado, as crianças aumentadas cada vez mais em número, já controlam todas as campainhas e igualmente os semáforos e cruzamentos das cidades e dos locais menores.
Políticos convidam algumas crianças para integrarem as suas listas eleitorais.
Estas recusam. Ainda são ingénuas e puras.
Alguns políticos, seguidos de jornalistas e também juízes, mimetizam-se de crianças.
Entretanto, os policias que não foram aumentados começam a desconfiar dos políticos.
Deixam definitivamente de bater nas crianças.
Alguns juízes ficam preocupados, irrequietos.
Jornalistas com assentimento de culpas, descobrem códigos deontológicos, e preocupam-se.
Nenhum político dá o braço a torcer. Há mesmo alguns que começam a tocar campainhas e mijar nas calças.
As crianças começam a tomar conta disto.
Brincam, pocinham nas poças, lamacentam-se se for que ser, e sorriem abertamente.
Na sua anarquia voluntariosa, reanimam as coisas.
Os polícias passam-se para o lado delas.
Os juízes ganham bem. Os jornalistas vão pela notícia.
Políticos vários, rapam todos os pelos do corpo, chucham chuchas enormes, e imitam as crianças.
São descobertos e nunca mais ninguém votará neles.
Amanhã será um dia risonho e belo e haverá vida exuberante sobre a terra.
As crianças vencem sempre.

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