Tenho a desgastante tarefa de escrever
frases inúteis. Serão lidas, com sorte, uma única vez. Depois lixo.
Escrevo as frases mais efémeras que existem.
Escrevo as frases mais efémeras que existem.
O propósito é esse, o de escrever frases pálidas para serem lidas uma só vez. No princípio pensei que não, mas desenganei-me cedo. Neste trabalho escusado, não sobra tempo, amanhã pedem-se outras frases feitas, e é sempre assim, até secar a fonte, ou vir a enlouquecer, uma forma de bater a porta com estrondo.
Alguém tem que fazer este trabalho, há muitos que se puderem arrastam a minha honradez para a sarjeta para ocuparem esta cadeira, ainda por cima desconfortável. Basta um pequeno descuido, um titubeio, para alimentar o rastilho dos equívocos. Logo se inventam enredos, com personagens falsos e boas mentiras, e correm connosco, desta profissão única dos fazedores de frases inúteis. Depois, não se arranja emprego em lado nenhum. É voltar para casa dos pais se ainda existirem ambos: os pais e a casa.
Os tempos não estão para facilidades,
agarra-se o que aparece. Já vi passarem por este local muitos rostos inexpressivos,
quem sabe cheios de sonhos na cabeça. Esqueci-lhes nomes, e eles o meu.
Temos que ganhar sustento, este é um trabalho como outro qualquer. Nem melhor, nem pior. Um pingar da vida a conta-gotas e algum dinheiro para comprar cenouras. Escrever frases vazias não é das coisas piores. É inútil mas não é de todo mau. Só incómodo.
Não há horas de saída, sempre novos assuntos banais a pedirem novas frases. É um processo infindo, sem fim à vista.
Não tenho vida própria, mas do que vou ouvindo por aí, há muitos nestas condições, desconfio até, que serão todos. No princípio por ser estagiário, queria demonstrar trabalho, motivação (os patrões valorizam muito a motivação). Escrevia redondas notícias sobre tudo o que me mandavam. Era solícito. O tempo entretanto passou, fui ficando, e dei por mim que escrever tornou-se uma banalidade, é como beber um copo de água.
Agora já não sei fazer mais nada, sou
organicamente inútil no que faço e no que não sei fazer, que são todas as
restantes possibilidades que o mundo oferece e que desperdicei.
Nem para escritor dou. É uma elaboração
que exige frases inúteis criativas, um esforço suplementar que não atinjo.
Habitualmente, começo a jornada vai ainda madrugando e saio quando tiver que sair, pouco antes do dia clarear. Pego a entrada com a saída, o que me dá aproximadamente tempo para um banho, trocar de roupa e olhar com algum desalento para a cama do meu quarto que tem um colchão de molas com quinze anos praticamente novo. Já não me lembro bem da minha casa, mas sei que tenho livros, do tempo em que pensava que para escrever boas frases, tinha de as ler primeiro.
Nunca fui bom com números. Não sei, mas alguém me disse que os números constroem umas frases boas. Devo ter escrito uns milhões de frases vulgares. Não me lembro de nenhuma que possa usar nos raros encontros sociais que assisto, para lustrar-me como pessoa à frente dos convivas. Geralmente entro e saio calado.
O meu trabalho não tem verdade nem
mentira. É um correr ininterrupto de frases frívolas. Muitas falam de coisas
inexistentes, mas ao fim de tanto tempo a escrevê-las, eu o leitor – se ainda
existem – a lê-las, acreditamos em tudo.
Falei em leitores anónimos e nem sei se os tenho. Não escrevo para eles. Escrevo para comprar cenouras. E porque me mandam.
Antes esta profissão tinha nobreza (com carteira profissional e tudo), hoje dizer-se isto é considerado insultuoso e retrógrado. Só me apercebi da minha inutilidade vinte anos depois de juntar mecanicamente palavras. Levei todo esse tempo para o concluir, agora é tarde, não sei fazer mais nada. Devo ter-me tornado inútil como as frases que escrevo.
É bem possível que venha a morrer antes de chegar à reforma, o que me vai facilitar o futuro, que não saberia como ocupar, e reler os livros que tenho está fora de questão. A cama, alguém ficará com ela já que está praticamente nova, como disse.
Devo ser dos últimos, este trabalho deixou de fazer sentido. As pessoas distraem-se mais a ver as imagens do que a ler.
O jornal vai deixar de fazer edição em
papel, agora é quê as frases se vão esfumar num pestanejar. Antes eram cunhadas
nas folhas e ficavam impressas, não podiam fugir para lado nenhum. Agora com os
computadores, ora estão aqui ora ali, a mudarem constantemente de sítio e até
mesmo, lê-se uma coisa de manhã e uma hora depois já foi alterada: sofreu uma
actualização. Que interesse é que isso tem? Nenhum.
Uma notícia para ser tida em consideração precisa de pelo menos
vinte e quatro horas, para se deixar respirar, ganhar consistência. São demasiadas
horas, ninguém tem tempo.
O sonho que sonhei de ter uma profissão e uma “causa” numa só, e
deu nisto: fabricante de balões cheios de ar.
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