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Mensagens

A mostrar mensagens de março, 2019

BRINCAR

Ontem foi a véspera de hoje. Eramos crianças e brincávamos, coisas datadas, de época, jogos de rua, na rua, o espaço que marcava o centro do mundo, fosse numa aldeia minúscula e remota de nome, fosse num bairro grande da cidade capital. Brincávamos e eramos eternos, inesgotáveis, felizes, sendo pobres ou ricos, ou simplesmente remediados, a maioria de nós. Ontem as meninas não brincavam com os meninos, havia diferenciação de género. Mas curiosidade, e tentativas. Não era pelo género, era por ser assim. Ontem. Gritávamos, fazíamos alaridos, nódoas negras, arranhões, rasgávamos as calças. Eramos felizes. Imortais. E as duas coisas, mesmo os meninos que ficam somente à janela, atrás do vidro que nos separava, vendo o andamento do mundo, nós, porque não podiam participar dele, decisões muito pouco sensatas das   mães ou sabe-se lá de quem não os deixava ser meninos, na sua altura de ser. Erámos cruéis com eles os mariquinhas e brincávamos, fazendo galos na cab

OPINIÕES

* Em tudo se via o belo e o feio Em tudo havia uma conspurcação Ainda que mínima De um pouco ou muito de um e de outro e de os dois juntos ou separados. Não parece ser e haver Na natureza Um espaço inteiramente preenchido e em absoluto Do belo ou do feio. Com isto, esta indefinição, As avaliações das pessoas ficaram subjectivas. Tomam o belo e o feio por coisas suas, Ditam das proporções e quantidades De cada um. E é nesse momento Que o mundo se desentende. Menos os animais que não têm dúvida É tudo  belo e feio e assim deve ser, Mas cada vez há menos animais . *Adam and Eve in paradise - Flemish school

Niska

Afeiçoamo-nos aos animais e depois é isto: sofremos. Com as pessoas a mesma coisa. Mas afeiçoar é bom, e tudo tem tempo marcado. Afeiçoar, quando é a sério, é uma imensidão de emoções e sentimentos. Intenso e tanto. Adaptamo-nos, adequamo-nos, acomodamo-nos, modelamo-nos. Estamos a falar da construção do amor. É isso que é tão bom, e também num momento - inevitável - que nos leva a sofrer tanto. Afeiçoar é afinal um amor tranquilo, dos mais difíceis, dos mais desejados. Foi bom amar-te e na maior das improbabilidades afeiçoamo-nos tanto que todos os mimos que nos fizemos ficaram a ser poucos. Um dia destes retomaremos com certeza essa actividade deliciosa de te massajar a barriga, numa outra paisagem qualquer, seguramente com muito mais tempo, talvez todo, para nos dedicarmos convenientemente a esse prazer que temos os dois.

A PRIMAVERA A DAR NOTÍCIAS

* E então, fez-se um dia, do nada, aparecido assim sem  estar à espera, arrasadoramente completo de todas as coisas necessárias a um dia bonito: luminoso, caloroso, deixando ouvir as melodias das esferas. Tudo de fundamental está presente neste dia. As pedras que se pensam sempre duras, amolecem pelo calor que emana do dia; as flores, as plantas, seres solícitos e disponíveis para tudo, a simpatia, abrem-se lascivamente de pétalas e folhas, absorvem o ambiente criado; os animais selvagens e domesticados, fizeram uma pausa no seu quotidiano de sobrevivência e perigos.; os homens, tiveram e não seria de esperar outra coisa, atitudes dúbias: uns a apanhar sol tendo tomado a deliberada intenção de serem felizes; outros, indiferentes, ou desconfiados, cometeram as maldades habituais em si. Os deuses piquenicaram, tendo convidado os parentes, os anjos, os arcanjos, e fizeram muito barulho, arrotaram bastante e acabaram por poluir as nuvens, porque são seres superiores desliga

COISAS DO AMOR

Vá, avança, vamos, esboça para mim esse quase indetectável movimento de aproximação, o sinal de que é também a minha vez de avançar, desempenhar a parte no papel que cabe de te amar, e que o saibas tu, sem equívocos, o amor que me obriga-prazer, magnetiza colando-me, dois, um, a ti. Quando tomares a decisão de sinalizares a tua dica para a minha dica de entrada na cena nossa, abrindo a possibilidade de realização do movimento de amor estratosférico que esperas de mim, fá-lo sem peso de nada obrigatório, um impulso sem razão, mas acontecido unicamente para nos celebrarmos os dois, na invenção do amor.   Eu, nervoso e momentaneamente desentendido do controlo de mim, darei a novidade ao mundo, para que se saiba sem fronteiras, e porque sou de anunciar a qualquer pretexto, na maior das exuberâncias de excêntrico que sou. Direi que me amas e eu a ti, e pela simplicidade, parecendo repetitivo o anúncio desta cumplicidade única a dois, desde sempre dos homens existirem,  

A MULHER, O JARDIM, UM LIVRO

Regresso ao local que é um jardim público, onde uma mulher lia livros no meio dia dos dias. Digo lia porque não a vejo a ler sentada no beiral que delimita o ponto norte do jardim. Esse facto desequilibrou a minha tranquilidade   e o prazer que tenho em frequentar o jardim. Nesta ausência, supõe-se tudo: desistiu de ler; cansou-se do beiral e de se sentar nele; foi despedida e está no fundo do desemprego; está de baixa por depressão provocada pela desmotivação de ser funcionária pública; entregou a alma ao criador apesar de não ser idosa, mas a morte não se anuncia. A imaginação de uma pessoa normalmente imaginativa, consome mais tempo do que o total do tempo consumido nas tarefas do real na duração de um dia. É um encadeamento de pensamentos fantasiosos a seguir a pensamentos fantasiosos.  Pessoas como eu vivem no sonho e não se dão conta. A mulher que lia livros, conferia a identidade a este jardim. Era a sua assinatura, mesmo para a maioria dos utilizadores

OPERÁRIO DE FRASES VÃS

Tenho a desgastante tarefa de escrever frases inúteis. Serão lidas, com sorte, uma única vez. Depois lixo. Escrevo as frases mais efémeras que existem. O propósito é esse, o de escrever frases pálidas para serem lidas uma só vez. No princípio pensei que não, mas desenganei-me cedo. Neste trabalho escusado, não sobra tempo, amanhã pedem-se outras frases feitas, e é sempre assim, até secar a fonte, ou vir a enlouquecer, uma forma de bater a porta com estrondo. Alguém tem que fazer este trabalho, há muitos que se puderem arrastam a minha honradez para a sarjeta para ocuparem esta cadeira, ainda por cima desconfortável. Basta um pequeno descuido, um titubeio , para alimentar o rastilho dos equívocos. Logo se inventam enredos, com personagens falsos e boas mentiras, e correm connosco, desta profissão única dos fazedores de frases inúteis. Depois, não se arranja emprego em lado nenhum. É voltar para casa dos pais se ainda existirem ambos: os pais e a casa. Os tempos não estã

NOTA DE ENXOVALHO

 ** Uma falta de asseio, um conspurco, um achincalho. Dito, é um chorrilho de impropérios que salpicam como perdigotos a quem se chega à frente. Escrito, é um palavreado duro cunhado a frio numa folha de papel. Talvez faça mais estrago porque ganha um prazo de validade maior. Se se pretende um enxovalho em privado – na intimidade dos dois – aconselhamos o envio de uma nota, pode ser de papel amarrotado, com uma frase sintética mas levada da breca, inteligentemente costurada, arrematada com as palavras certas, que podem ser uma arma de destruição maciça. Pode passar a nota pelo interstício da porta de casa de banho enquanto o outro se chuveira , sob a almofada da cama, dentro da tigela dos cereais, vazia, do pequeno almoço do dia seguinte. Atenção, esta prática deve ser sempre feita sem a necessidade de cair na deselegância. Pode-se enxovalhar com luvas de pelica e o ódio dá-se muito bem com frases curtas. Há quem em desespero, se socorra da técnica das agulhas

PERDEU TODAS AS IDEIAS