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O HOMEM QUE QUERIA VER O MAR - LÁ, NO SÍTIO DE CASCAIS






II

Foi assim que o Tertuliano,

Fez o baptismo de uma carreira trágico-marítima, a sua história pessoal, numa pequena embarcação colorida no entanto tímida, com o nome “meu coração” pintado na proa, escrito por mãos analfabetas, que copiaram tremidamente a grafia escrita numa folha de papel, por alguém com uma grafia pouco convincente, tremida igualmente.

Os barcos são um nome feminino que se diz no masculino impropriamente. Correctamente ditos deviam dizer-se barcas.  E estas, nem todas, mas quase todas, são femininas:  não são os barcos da guerra, porque são masculinos, cinzentos, feios, transportam a morte por passageira e como tal não têm nenhuma propriedade feminina. 

O “meu coração” é uma barca angulosa, esguia, e dadas as circunstâncias, dentro da sua humildade de barco de pobre, comedidamente sensual. Os marinheiros que a embarcam não têm pensamentos desta dimensão, mas haverá com certeza alguém, mais fleumático, com pachorra para abstrações, sentado num bordo qualquer de um cais onde esta barca se amarra, que pensa na sua sensualidade comedida, e conjuga considerações de ordem poética sobre o assunto.

Da sua paramenta, uma vela latina quadrangular e duas velas de estai apoiadas numa vela a apontar a ré. Em momentos de falta de vento, os remos agarrados por essas mãos exactamente analfabetas, dão o seu contributo à locomoção do barco. Neste caso, analfabetas mas úteis.

Nesse mesmo dia, ou seja,  no dia a seguir a ter desembarcado ferroviariamente em Braço de Prata, Tertuliano mudou-se do bairro chinês e do “palácio” de lata do primo pseudo francês, para tomar posse do cargo de guardador de barcos e peixes, pastor dos mares.

Ainda ontem era pastor de cabras e hoje é guardador de cardumes. Só muda a alimária, a profissão é a mesma. Quando se tem jeito, conduz-se qualquer animal.

 O seu novo lar, arejado a todos os gostos atmosféricos, consta de uma lona mais ou menos impermeável como telhado, mas não importam as condições precárias,  o mar é um amor de muitos sonhos e ilusões. Ele está apaixonado e aguenta todas as intempéries, de peito aberto, romântico com todos os pormenores. As constipações vêm a seguir.

 O seu quarto é um espaço minúsculo onde cabem em posição fetal os quatro tripulantes, numa geometria corporal que nalgumas conjugações nocturnas involuntárias, poderem vir as partes traseiras de um a encaixar na cara de outro,  com as consequências nefastas que dai ocorrem. Ninguém se queixa, esta gente está habituada a viver assim, como calha. Deus não foi equânimo.

Os seus primeiros dias da vida de marinheiro foram um tormento. Uma tempestade permanente naquele mar-rio bonançoso. Enjoos constantes, e nas vindas a terra mal conseguia dar dois passos direitos, via tudo a girar a uma velocidade incomensurável, muito rápida mesmo, e quando tentava pousar o pé no chão, tinha a sensação que este falhava, deixava de ser chão, pelo menos para ele, já que todos os outros com quem se cruzava, andavam mais ou menos direitos.

Veio-lhe a pensamento que não teria jeito para aquela profissão. Os colegas metiam-se constantemente com ele. Que era uma “amélia”, um inútil. Mas ele resistiu, e com o tempo que o tempo precisa de ter, os sintomas do mar esbateram-se e deram descanso.

Como em todos os princípios, a confusão dos nomes e dos objectos que lhes correspondiam era muita, a instrumentação marítima e todos os acessórios faziam um calhamaço de palavras novas. Acrescente-se ao léxico as palavras e termos inventados pelos camaradas – uma versão muito livre do dicionário técnico-naval -  para confundir o rapaz.

Tertuliano era esperto, ganhou rapidamente o jeito e o saber da semântica marítima. De tal forma que se fez um mestre, um conhecedor profundo dos segredos mais íntimos dessas palavras.

É que havia um pormenor fundamental, que distinguia Tertuliano dos seus companheiros do “meu coração”. Um  gatilho. Para estes, o barco e o seu trabalho de transporte de coisas várias, principalmente víveres, de Vila Franca para Lisboa, era o seu fim da linha, um trabalho para a vida. Não queriam mais, não tinham ambição. Pare ele, era o princípio da linha, a porta de entrada no “paraíso”, o seu ritual de iniciação.

Rapidamente, claro, percebeu que o mar da palha não é um mar, mas somente uma ampla bacia calmosa, que recebe a correnteza do rio que desce da sua nascente, na Espanha, longe, e que faz o seu último repouso antes de se unir ao mar, o verdadeiro, o imenso,  que não se consegue medir.

Ele já viu esse mar verdadeiro, foi num domingo – o seu dia das descobertas - no sítio de Cascais. E as diferenças são muitas. As cores são mais fortes, as ondas, mesmo em pequenas, mais pronunciadas. E o som do marulhar? é um som inigualável.


O pastor-marinheiro

é homem de compreensão, aprende como se estivesse num estado de possuimento, catatónico, toda a ciência oceanográfica e marítima. É uma trituradora de nomes, está a transformar-se numa enciclopédia marítima andante, e os companheiros, desconfiados, pensam que ele não tem os alqueires todos bem medidos. Não tem uma conversa decente, os seus vocabulários não condizem.

No  quotidiano, rio acima, rio abaixo, e nos intervalos curtos que o trabalho concede, dá por si a apreciar o impulso do vento nas velas, os puxões repentinos, os engasgos da barca, as suas indecisões, as mudanças inesperadas de direcção,  e aprende, adivinhando intuitivamente os sentidos dos sopros que levam o barco no bom caminho. Um dia irá conduzir uma barca, mas das grandes, das que dão nas vistas.

Pode ser-se um bom marinheiro analfabeto, mas o Tertuliano não é dessa opinião. A seu ver tem que frequentar uma escola, começar pelo princípio. E no princípio são as letras. 

No seu raciocínio e sem que saiba porque, ele considera que é coisa mais importante na vida: aprender a lê-las, entender os seus mistérios e segredos, perceber que no silêncio entre elas, se disfarça a mensagem, o que importa. E assim como os números. Com estes ainda se fazem e pensam coisas mais bizarras. Descobrem-se as leis dos céus, só de os juntar adequadamente  em conjugações matemáticas,  as frases dos números.

Numa noite de luar, na acalmia das águas dormentes do Tejo, deitado no seu convés a olhar distraidamente para as luzes intermitentes do céu, e pensando nestes assuntos, apanhou por acaso ou porque tinha de ser, uma conversa de botões, os seus próprios. Coisa estapafúrdia, botões que falam, mas é verdade, falam.

Diz um: - Está a pensar em ir para a escola estudar.

O outro: - A da vida?

- Não, nessa anda avançado. Para a dos livros, quer fazer-se mais homem- diz um que ainda não tinha dito nada.
O da casa do meio: - E como é que os livros o fazem mais homem?

- Ele acha que sim e se for essa a decisão temos de ir com ele, não nos resta outra alternativa- contrapõe o um.

Entra na conversa o que aperta a gola da jaqueta, o chefe dos botões:

 - Nos livros contam-se todas as histórias que há para contar, e quem fala tu cá, tu lá com eles, habilita-se a tudo, até mesmo a realizar coisas impossíveis, como  agarrar o Mar com as mãos. Coisa que quem não lida com livros não consegue fazer, porque agarrar o mar com as mãos é uma poesia, e isso exige estudos.

- Se for como dizes, também quero aprender- comenta o do punho.

Responde o chefe: - se vais aprender ou não, tenho dúvidas, não é por nada, és um botão!  Certo é que vais com ele às aulas, e vais ficar mais perto do lápis que todos nós, milagres acontecem!

Alguém dos botões, a despropósito, ou por graçola, disse:

- Arrumemos esta conversa que estou a descoser-me.

Os outros não responderam. Terminou a conversa, e vai ser muito pouco provável que se venha a dar novamente voz a botões.

O Tertuliano ficou na dúvida se estava a ouvir bem ou se seria um devaneio – já não é primeira vez que lhe acontece ouvir vozes.

Deixou-se meigamente a olhar para as estrelas. Basta um olhador assim para se restabelecer o silêncio no universo, a paz.

 Adormeceu e dormiu, ainda era jovem.



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