Na sua “cultura” ( e faz sempre
vir a lágrima ao interstício do olho, dizer-se “a sua cultura”), as orações
cristãs foram as primeiras que aprendeu. Ter-se-ia ficado por essas, orações honestas, reconfortantes, ambas, não se querendo por pudicícia gerar
conflitos internos não lhe viessem a seguir, que nessa altura não contava com
isso– o mundo evoluiu a uma velocidade estonteante - outras curiosidades de experimentação, com a ingenuidade
de acreditar que esse mesmo mundo em que confiava de olhos fechados, afinal,
pode ser um caleidoscópio.
Foi ontem – ainda hoje anda por
aí, até exacerbado como uma possível febre dos fenos – que ter nacionalidade, “boa”
(hemisfério ocidental, sempre a subir de nível), das antigas, das credíveis, a
que se pode chamar Pátria, palavra ímpar (e de novo a lágrima no canto último ,
descaindo do interstício), era uma bem-aventurança , um presente bem
embrulhado, com tudo incluído.
Uma língua belíssima; um Deus único que fez a
criação por completo e sem descansos; heróis do melhor que se possa ter nas
várias áreas dos ramos vários: atletas da poesia, das gestas, das navegações,
das importações de mão-de-obra barata, do enriquecimento do erário público em
bolso privado; uma história oficial, cientificamente coligida com preocupação
da academia da letras na utilização
criativa de adjectivos superlativados e
sublimações de alma colectiva; e onde não se conhece um único cidadão pátrio com
nome (só anónimos, e esses não existem nem existiram) que tenha cometido uma pequena
atrocidade maldosa que não fosse a pensar (a lágrima) na alma pátria.
As outras pessoas, de outros sítios
de quem se ouvia vagamente falar (da África então!) eram alminhas, penadas,
coitadas, piedade delas, ou então colonizadores com apelidos estrangeiros, quase
piores do que os ingleses.
Centrando a conversa no rezar, porque
da pátria uma vida toda não daria para falar dela, e bem, adquiria-se desde a nascença
esse cabaz, por atacado e por junto. Ganhava-se num cesto de vime um crédito
prévio de vida exemplar.
Sendo as pessoas bem-mandadas e gostarem de uma mão que exerça sobre
os seus ombros a pressão de uma prensa, e sendo que “Anátema” é uma palavra dúbia-mal-intencionada
e uma condenação tão horrível que quase absolutamente ninguém não sabendo bem o
seu significado, mas mesmo assim não querendo ser anatemizada, então, antes tudo do
que nada, ou seja, rezavam-se as orações católicas e aceitava-se sem discussão
o menu completo, nesse tempo.
Rezava-se, rezava-se,
continuava-se a rezar, e nalguma coisa daria.
Os tempos mudaram (mais pelo
passar dos dias do calendário do que as mudanças das vontades, e diga-se francamente:
mudar o que estava tão bom?), e no hemisfério que mexe - o único decente e
higiénico de todos os hemisférios, onde se podem erigir muros civilizados para
impedir circulação livre de humanos, e governos que pertencem a uma comunidade federalista
de estados que os apoiam e são democraticamente fascistas e gozam com todos, os
que rezam e os que não rezam – construíram-se minaretes, mesquitas, sinagogas, mercearias
de conveniência, restaurantes que baniram a carne de porco, e a arquitectura dos
locais tem mudado muito (há quem também reze a isso e com créditos).
Ainda bem que tudo isto aconteceu
(rezar no sotaque em que melhor se reza e na companhia de um outro rezar em sotaque
que não se identifica), menos as intolerâncias, disfarçadas de pele de
cordeiro.
A nova ladainha não deixa de ser agradável: os
hindus têm deuses mais que os nomes dos seus seguidores; os mantras budistas
são de uma delicadeza no trato de serem repetidos que encadeiam a presença do
espírito (apesar de não se saber o que dizem); os hebreus são discretos e cirúrgicos.
Toda a gente menos os ateus, os apressados e os frequentadores de centros
comerciais, rezam agora em muitas cores. Todos esses não rezam, até um dia, em
que aflitos, pesam que rezando o que não
sabem rezar se vão ver livres de qualquer coisa muito má.
Chegou-se mesmo a uma situação em
que há novos crentes bem intencionados, e cultos e diferenciados, que lançam novas preces enigmáticas, desejos eco-ambientais,
mantras quânticos , projecções holísticas quadrimensionais, energias híper-subtis,
todos inflados das melhores das intenções, actualizados.
Deve-se mesmo respeitar por
legítimo e passível de uma grande riqueza e genuína motivação espiritual, os que
são seguidores das motorizadas “Vespa”, abençoadas por continuarem a existir, darem
prazer aos seus donos, e serem um símbolo da pureza ancestral do mundo (no
tempo em que existiam motorizadas em estado puro). Há até padres que lindamente
paramentados e com capacetes vermelhos, portam a cruz numa mão, e na outra,
pousam no ombro dos motards seus
condutores, até que param nos semáforos e distribuem miríades de sinais da cruz,
benzidos com águas bentas virtuais (em pensamento, mas vale o mesmo).
Toda a reza feita para que a vida seja melhorzinha, torne o mundo melhorzinho,
que a purificação de quem reza por si e pelo mundo seja melhorzinha, é uma boa
reza. Se no final de tanta oração, nada
disto vier a acontecer, então, que pelo menos os filhos não venham a culpar os seus pais se as coisas não
melhoraram- Eles cansaram-se de ver os pais em posições bizarras, em horas
estranhas, em comunidade de amigos, pós prandial, a rezarem ou mantrarem desalmadamente. Se não deu,
tentaram.
Toda a oração está no pleno direito
de ser belíssima, fundamental, estatisticamente eficaz em cem por cento de
eficácia, identificação legitima sem outros sinónimos ou significados com uma
intenção pura e de religação.
Na sua cultura, que é o código
alfa-numérico-sensitivo da sua pessoa, depois destas voltas todas, Luis, acha
que a melhor forma de desejar a harmonia do mundo, é rezar silêncio sem palavras.
Só intenção, sem aditivos nem sabores a frutas.
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