“Odeio a praia. Água, nem se fala. Alergia. A areia repugna-me,
excremento geológico perverso a imiscuir-se no corpo dos outros, por tudo
quanto é sítio. E não há forma de nos vermos livres dela: ao fim de uma semana
ainda a trincamos, aparecem grânulos mínimos mas incomodativos nos interstícios
mais recônditos, que foram lá parar propositadamente para nos irritar, causar
incómodo, tirar o sossego, uma coceira infinda, a perna a imitar um braço de um
boneco dos chinês irritantemente chinês, até ao durar da pilha, felizmente não
duram muito.
Areia e sol juntos, o pior convite – vou a contragosto - que me
podem fazer para passar um dia fora de casa. Não é sequer um convite, ninguém
me pergunta se quero, levam-me e eu vou. Bem se sabe que adoro a rua, espaços
amplos, agora ver tudo em tons de amarelo, sem um apontamento de verde - a
minha cor preferida - não haver nas proximidades um pequeno arbusto onde nos
possamos alçar, e ainda queimarmos as nossas mesmas plantas- as dos pés - como
se estivéssemos a andar por cima de uma frigideira com óleo.
Desculpem, mas é
um exercício ou de tortura, ou se é com gosto (o que não é o caso), o maior dos
masoquismos. Que prazer é que isso dá? Há tanta coisa que não compreendo neles.
Imaturos.
Um dia passado assim, é um rosário, e não sou religioso, a minha
espécie desconhece a culpa a não precisa de se justificar impotente perante os
acontecimentos maus ou bons do mundo.
Há uma altura do ano, não sei porquê, que é todos os fins de
semana, o mesmo roteiro. Por sorte a minha memória de curto prazo não é muito
desenvolvida, esqueço rápido, o que é bom porque no fim de semana seguinte,
quando saio de casa, entro no carro, não me dou logo conta para onde me estão a
levar. Se me lembrasse, fincaria os pés que são patas, e quatro, no chão, e
para me tirarem tinha que ser por guindaste, e olhem que não sou leve. Mas saio
sempre de casa com uma felicidade imensa, a melhor coisa do mundo, depois dele claro.
Quando chegamos à ponte é que percebo finalmente para onde me
leva. Só para entrar na ponte é uma espera meditativa, que é estar a ser
irónico, de meditativo tem muito pouco, é nervosa, é o que é. O que ficaria bem
dizer é que se leva com uma seca irritativa. Como se não bastasse encadeia-se
esta com a seguinte, para atravessar a vila ou cidade ou esse aglomerado urbano
desorganizado, que não sei o nome técnico, que vem na lista de assento das
povoações. É o caos, sempre foi assim, com certeza será sempre assim e ninguém
os que lá vive nem os que lá passam, irão alguma vez importar-se com isso.
Com a meditação toda feita – a valer para uma semana completa -
conclui-se, espera-se com êxito, o último troço de uma estrada minada de
buracos e pó que se entranha mesmo com as janelas do carro fechadas. Os
solavancos são de tal magnitude sísmica que ganhamos uma camada de enjoo, com efeitos
vibratórios para o resto do dia – que ainda vai no adro, uma procissão, uma via
sacra. No regresso repete-se a dose. Flagelação em duplicado, o gosto pelo
sofrimento no seu expoente maior: o prazer.
Do parque de estacionamento até ao local onde se vai marcar
território, é fundamental repetir que as extremidades plantares fritam com o
calor da areia. Um observador mais criativo, diria estar a ver um grupo de
pinguins (naquele balancear peculiar que fazem ao andar), a atravessarem
estranhamente um areal, em latitudes afastadas das suas. Perderam o sul - neste
caso - e deambulam num areal como se fosse numa planície da Antártida.
Ao rubro. A partir de agora, é só dizer mal.
Primeiro, a praia é uma extensão de deserto a perder de vista,
mas todos se aproximam o mais que podem, pegados uns aos outros, parece que têm
medo de estarem sozinhos, de se confrontarem com a sombra e não saberem que
explicações dar. Não se procura um banho de natureza, equilibrar-se com os sons
do mar, das gaivotas, encher o depósito da vista com os verdes, os azuis e os amarelos.
Nada disso, às camadas.
Vai-se para a confusão, a gritaria histérica das crianças, uma
bola de futebol que está constantemente a vir parar ao nosso lado, uns senhores
e senhoras que passam o dia para trás e para a frente a gritarem qualquer
coisa, empurrando um carro rídiculo com umas rodas enormes e disformes, miúdos
e graúdos hiperacivos aos saltos, em ginásticas, nos desportos radicais, sem
parança.
Não há um único sítio apropriado para alívio das necessidades,
todos a verem se apanham os infractores. Parece que não têm mais nada para
fazer senão estarem constantemente alerta, não temos onde o fazer, vão para a
praia para continuarem tensos e com os nervos e outras extremidades
descontroladas a saírem pelos bolsos dos calções de banho.
Quando termina o fim-de-semana, a única coisa que se lhes
alterou foi a cor da pele, que passou de doentiamente branco-pálido, para
moreno preto-da-guiné, ou rosadinho lagosta acabada de sair da panela. Limpeza
interior, renovação dos estados de alma, energia intrínseca renovada, nada.
Começam a semana como terminaram a anterior: acabrunhados, opacos, cheios de tédio.
Na praia, todos defendem a sua sombra como um bem precioso, se
tentamos utilizar a sombra do vizinho, somos corridos a pontapé. Com a comida é a mesma coisa, como o terreno é um deserto
infértil, cada um agarra-se à sua ideia de oásis e partilhar é palavra que não
cai bem, solidariedade é para os outros, a minha comida é só minha. Enchem os
depósitos de produtos altamente tóxicos e calóricos, e vão a banho.
Pondo a areia de parte, a que já se dedicou a atenção devida, e
então a água? Até me arrepia, literalmente, e não é pela sensação térmica.
Quando há poucas ondas e aquela liquidez toda está mansa, suporta-se.
Refrescamos os membros inferiores e está feito. Agora quando ela se revolta e
entorna-nos enxurradas de água misturada com areia e espuma, e carapaus e o
mais que seja, que ficamos zonzos sem saber em que direcção fica terra e o que
nos aconteceu, é demais, é abusivo, devia ser proibido.
Sinceramente não vejo que prazer possa dar andar a nadar de um
lado para o outro. Fazer carreirinhas tipo torpedo? É uma coisa sem objectivos,
acriançada, não se lhe vê proveito.
Já perceberam que eu não venho sozinho para a praia e se a vontade fosse minha, não era sobre este assunto que agora estava a falar. Mais provável é que vos descrevesse os prazeres aventurosos, ardentes, de uma tarde bem passada num jardim público, pululante de belas passeantes, a cheirarmo-nos uns aos outros, a todo o instante a chegarem novos para cheirar, num tapete finamente relvado e fresco, onde nos podemos distender convenientemente, e árvores, poder alçar comodamente a perna, sem constrangimento, sem vergonha.
Se estou aqui é por causa dele e o que mais me incomoda é que
ele pensa que eu adoro o “programa”! Que me está a oferecer felicidade em
estado puro.
Não, ele está num processo de negação, eu cansado de lhe dar
pistas e mais pistas sobre o tema em apreço, ele a não querer perceber. É que
não se pode ser mais óbvio: amuo, faço peso “morto”, tem que arrastar-me,
rebolo-me em cima de todas as toalhas que encontro, roubo bolas, bóias, formas
de plástico, como o que apanho, deixo a minha marca nos paus dos chapéus de
sol, instauro uma revolução descontrolada, todos a refilarem com ele, com nomes
feios pelo meio e tudo.
Ele finge que não percebe, e porque me quer ver contente e
livre, naquilo que é a sua ideia de liberdade para mim, finge que não os ouve e
estimula-me ainda mais e ri. E é quando ele ri dessa maneira de me estar a
dizer que é feliz porque eu sou o seu companheiro, que desarmo o meu mau-humor,
perdoo ter-me trazido para este sítio horrível, e salto para cima dele e
cubro-o de mil uma lambidelas de amor.
É muito imaturo. Se lhe dou demasiada atenção, não quer fazer mais nada senão brincar: de manhã à noite. Não se cansa, repete e repete as mesmas coisas, sempre como se fosse a primeira vez, como se estivesse nesse mesmo momento a iniciar um jogo, um novo desafio. Não passa de um miúdo crescido com sapatos de camurça, gravata de seda, mau feitio com os subalternos e implacável nos negócios, que se transfigura aos Sábados e Domingos, numa pessoa despreocupada e ainda por cima protectora.
Sempre a dar palpites: «senta-te, deita-te, cala-te, vai comer, vai dormir, toma isto, vai buscar aquilo». Não me deixa ser eu, tomar decisões.
Estou para aqui com esta conversa interior e vai julgar-se que o acho um monstro, que o tenho em pouca estima. Nada disso! Já disso há dois parágrafos que o amava.
Remoo estes pensamentos porque sou um indivíduo reflexivo, mas é o ser que mais amo neste mundo, e remoer é uma coisa natural em mim, não faço de propósito e esqueço tão rapidamente como me lembrei.
A minha vida sem a sua companhia seria um manto de solidão a arrastar-se pelo chão cheio de pedras a rasgarem o manto e a dificultar a marcha. Parece poesia mas é mesmo assim.São desabafos, nada mais. Basta que me estenda a mão, e desfaço-me, não contenho as emoções, fico incontinente dele.
Os homens e os cães, temos a aliança de cooperação mais antiga
do planeta. Andamos juntos há milhares de anos. Algures, um dia perdido numa
floresta ou savana, que já desapareceram há muito, descobrimos que trabalhando
juntos teríamos mais sucesso nas caçadas e por conseguinte menos fome. Somos
bons a detectar as presas, encurralá-las, eles são bons em criar estratégias
para as caçar. A nossa destreza física aliada à sua inteligência constituem o
par perfeito. Começou assim mas com o avançar do tempo e com a descoberta da
pastorícia, da agricultura, ficámos inseparáveis. E foi esse o acordo que foi
feito, a partir daí somos parceiros.
Temos linguagens diferentes, mas aprendemos a entender os sinais de cada um, as palavras, as nossas modulações no ladrar. Vai chegar o dia em que vamos falar a sua linguagem, é um sonho meu.
Temos linguagens diferentes, mas aprendemos a entender os sinais de cada um, as palavras, as nossas modulações no ladrar. Vai chegar o dia em que vamos falar a sua linguagem, é um sonho meu.
….
Nunca esteve como hoje, numa excitação fora do comum, cinético. Normalmente, quando vai banhar-se, tenta insistentemente convencer-me. Entra, sai, chapinha, apresenta os seus argumentos, atira paus, atira bolas, atira-se a ele, insiste, desiste. Fico depois em paz enquanto ele se cansa a imitar os golfinhos, a fazer carreirinhas. Fico por ali à beira da linha da água, a vê-lo. Hoje, parece diferente, não explico mas sinto, está mais exuberante, esbraceja mais. E está bastante longe e continua a afastar-se perigosamente. A minha visão não é das melhores, tenho alguma dificuldade em perceber se está a rir ou a meter-se comigo.
Homem endiabrado, idolatro-o, mas é tão absorvente como a água, o segundo objecto, ou coisa, ou sei lá que nome dar, que consegue ser mais irritante que a areia, que não se deixa apanhar nunca. É um líquido, por isso mais experta, mais manhosa, a esgueirar-se pelas frechas todas. Para além disso, descompõe-nos o pelo, se for então na mistura de água e areia, fico como um croquete com patas, temperado com sal a mais.
Este jogo de hoje é novo, acena-me freneticamente. Deixo de o ver intermitentemente, a sua cabeça desaparece. Quando volta, insiste nessas macacadas: a esbracejar como se estivesse num festival de música de Verão – fui com ele uma vez, num parque da cidade, e estavam todos nesta brincadeira, a abanarem os corpos de um lado para o outro, de braços levantados, olhos fechados e com caras de parvos.
O que é que ele quer? Estará a chamar-me? Estou com um pressentimento estranho, isto não é normal.
Acabo sempre por ser enganado mas como o amo, não me nego ao
chamamento. Sei que pode ser parvoíce, mas por ele faço tudo – já o tinha
dito?
Odeio a água em quantidades que ultrapassem a tijela por onde a bebo, mas não o vou deixar sozinho.
Aqui vou eu!
Estranho, avancei destemidamente e nem me lembrei que não sei nadar. Sou um retriever, esta função devia ser inata, mas não, não nasceu comigo.Por ele nado mesmo a não saber nadar.
Agora que dei conta disso começo a atrapalhar-me com esta
mistura de areia, com a rebentação das ondas – não dão tréguas, em fila, umas
depois das outras - a espuma que se forma, a areia que se levanta a deixar a
água turva, perco a orientação, deixo de saber onde está ele, onde estou eu,
onde fica terra.
Não é fácil explicar o que está a acontecer, estou perdido, mal vejo, não respiro convenientemente, engulo indevidamente quantidades obscenas de água, estou num meio líquido e não flutuo.
Esperneio para nada, estou a perder energia, vou deixando ir, fui, desisti. Já não vejo, nem sinto, começo rapidamente a deixar de conseguir pensar.
Ficou tudo escuro. Não estou no ambiente água. Não estou ansioso, pelo contrário, numa grande paz. Caminho, creio, num túnel com uma luz ténue, acolhedora, ao longe que não sei se é longe, pode ser um túnel ou não, agora já está mais iluminado, a luz é quente. A sensação de estar aqui é boa, vou contente na direcção dessa luz, que agora consigo distinguir que vem de uma porta, melhor, o caixilho de uma porta, não tem porta. É uma cortina de luz. Nem sei se caminho, se flutuo. Estou a ser gentilmente impelido na sua direcção, sem nenhum esforço meu, vou.
Julguei estar só mas não, começam a aparecer outros seres, todos no mesmo sentido, todos com um ar perfeitamente tranquilo, alegres. Todo o tipo de seres, ou seja, de todas as espécies animais, e humanos. O meu dono está agora a passar por mim, à minha esquerda, mais rápido, sorri, está de calções de banho, vai chegar ao lugar da porta primeiro do que eu. Que lugar é este? Para onde vamos? Já não o vejo.
Apesar de pequenos contratempos, normais nas vidas das pessoas e dos cães, estamos sempre juntos, não podemos mesmo estar um sem o outro. É o amor, gosto de pensar assim, não o posso deixar outra vez sozinho.
Estou a tentar fazer um esforço para o apanhar, ele não tem nenhum sentido de orientação, está sempre a perder-se, é a primeira vez que passamos por aqui, ele é distraído.
Raio do homem, que o amo. É a minha família.
Vamos para onde afinal? quero lá saber, o que interessa é que vamos e estamos juntos, na vida e mais além.
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