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DANDO NOMES AO REAL






Imaginando.

O mar.

Bonacheiro, aborrascado, ambíguo (palavras boas, e não se usam, contentes de serem ditas, ou escritas, lembradas da poeira que as cobre, fechadas no mofo dos léxicos, na qualidade de sinónimos figurantes, muito raramente a ganharem uma audição, soarem).

O céu.

Vítreo azul puro, plúmbeo, indiferente. No entanto sempre o mar, pouco a dizer.

A terra.

Amarelenta paupérrima, amarelenta vivaz. Os verdes aceitam-se todos, e os castanhos, mais sisudos, bem-aventurança serem vistos ainda que sisudos. Terra acobreada, todos os adjectivos e poucos, ou cinzenta, ausente.

Uma flor,

uma árvore,

um animal ,

habitantes da superfície, sem cores atribuídas, ou engalanados de todas elas. Podem ser sombras, desenhos sem vida, do que já foram, ou o oposto, a jactância, aqui aceite, de se dizerem vivos transbordando vida.

Os homens, pálidos ou enrubescidos.

Os homens, tão difíceis de catalogar. Os homens, porque se desejam catalogar? Não os há só com essas características. 

Há de todas. Prateleiras e prateleiras.

Sentado com as pernas cruzadas -esperando-se que comodamente sentado - a firmar uma pequena chávena que contém café fumegante a invadir de aromas o ambiente onde se exala, o homem que faz essas duas coisas, espera em pouco tempo resolver estas questões capitais: dar apelidos aos nomes das coisas. É uma questão de método, e ele é desses. 

Enumerar, apor uma significação lógica, fica feito. Faz isso, ou seja, a tomada de resolução, para entreter o tempo de espera.

É que espera a mulher que ama e se atrasou. Não se importa, nem enerva, atrasou-se mas chegará, e hão-de continuar a amar-se com a mesma veemência de quem se ama com autenticidade, já que veemência, para o amor, sabe a imposição de género, ou estilo, e o amor pede palavras com mel.

Até que entre por aquela porta e o seu aroma doce e quente invada o espaço anteriormente conquistado pelo aroma do café, lhe abstraia mesmo a sua preponderância e tome para si todas as atenções olfactivas, ele tem tempo para pensar nestas coisas. Nas teorias do real. Ou na justificação destas.

Podia ser diferente, estar ocupado com o noticiário, a última hora, aquele jogador famoso que remata os golos que marca com uma postura de toureiro, vai sair do clube. Transferência estereofonicamente milionária. Está no jornal, mas os jornais já não têm nada para ser lido e ele não é desses jornais, é dos que já não há, feitos por jornalista.


É diferente por isso, por dar importância às teorias do real. Pode ser que não tenha razão e os outros sim. Desde logo, exceptuando a mulher que o ama, não faz conversa com mais ninguém, ou antes, ninguém faz conversa com ele, por o considerarem um indivíduo sem assunto, os que naquele café o conhecem. Os desconhecidos por essa situação, não conversam, está-lhes na natureza

Não o incomoda minimamente, já que a mulher que o ama e ele a ela ama, para além do seu aroma doce e quente, preenche totalmente a sua cabeça e toda a necessidade de uma conversa que fuja disso, é uma redundância, uma inexistência.

Assim que tomou a decisão de resolver esses problemas, só para passar o tempo, e apesar de o fazer com o maior dos profissionalismos, seriedade a toda a prova, o que mesmo lhe interessa é ver entrar por aquela porta a mulher que ama, enlaçá-la num longo abraço, e tomarem uma bebida juntos, contando-se as novidades do dia, limpando todos esses temas do quotidiano, para depois, resolvidos, fazerem o que mais realmente importa: amarem-se perdidamente.

Não contam com o mundo para nada, contam um com o outro.




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