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UMA CASA NO CAMPO





À espera que o tempo passe. É isso. E não o veja. Fazer-se esquecido, de morto. Foi a melhor lição que o falecido pai lhe deixou: “filho, faz-te sempre de morto”. Os espertos, não são os que falam melhor, são os que se fingem mudos. Não se dá por eles, e nos momentos certos aparecem nas comemorações para reclamar o prémio. De resistentes, de vividos. Foi o que fez. Deixou-se ficar, a fazer sombra nas esquinas dos gabinetes escuros dos grandes edifícios antigos da Administração Pública. Devagarmente, sem pressa nenhuma, a coleccionar cruzes em calendários dos dias, para a reforma. O sonho.

A sua resiliência e falta de vontade natural deram-lhe todas as progressões possíveis na burocracia do sistema. Outros, mais ambiciosos perdiam a paciência, desistiam, iam-se embora para a privada, ou pediam mudança de funções, de local de trabalho. E como os lugares ficavam vagos, aproveitava-os ele. Foi longe, sem saber fazer nada: um homem sem préstimos com uma folha de serviço imaculada.

E cá fora, na vida civil, era o mesmo padrão. Esquivo, de poucas falas, sem amigos no cadastro. Uma vida de casa-trabalho-casa. Nunca ganhou muito dinheiro, na coisa pública nunca se ganha muito dinheiro, a não ser por baixo da mesa, mas isso também é o que dizem, não se sabe se é verdade, ninguém viu. O que ganhou, nesta parcimónia toda foi o suficiente para aforrar. Certificados, um punhado deles em boa altura, poupança numa boa seguradora estrangeira, uns terrenozitos comprados no momento certo a gente muito necessitada, um apartamento nos arredores de Lisboa, barato, jeitoso. E um pé-de-meia em notas vivas, bem guardadas.

A recompensa final para uma vida regrada e pensada com dois dedos bem medidos de testa, é um retiro no campo. Se fez toda a carreira na secretaria das florestas, mesmo fazendo pouco, alguma coisa percebia de ouvir este e aquele, tantos por lá passaram. Era um especialista, um quadro. E também foi por isso que ele subiu. Quando os novos directores tomavam conta dos gabinetes, cada quatro anos mais ou menos dependendo, ganhavam confiança na sua rectidão (era assim que eles o viam), e como percebiam muito pouco do que ao que iam – era por pouco tempo – confiavam-lhe decisões importantes. Umas vezes acertava, outras falhava, a vida tem destas coisas, não o iam culpar por isso, era um bom funcionário, cumpridor dos horários e das hierarquias, que precisava de ganhar a vida.

Os erros não afectavam muito os directores, ainda menos quando eles os cometiam. Dava-se uma boa gargalhada, atirava-se um par de chalaças por telefone, com os seus correligionários, e a coisa esquecia-se. Errar é humano, só não erra quem não faz, mesmo não fazendo se erra, e estar ali, quando se podia estar muito melhor, merece consideração acrescida, mas as pessoas em geral são ingratas, nunca olham ao bem que lhes fazem, e este bem era uma missão.

Assim preencheu o seu tempo e saiu com louvor, e um relógio oferecido pelos colegas num jantar de despedida, numa casa de pasto acanhada, onde iam habitualmente almoçar, não ele que foi sempre poupado. Houve discursos, o seu acanhamento foi igual ao de sempre, pronunciou meias doses de palavras, e no final um brinde com uma garrafa de espumante que ele trouxe de casa, esquecida de um natal qualquer, longínquo, que alguém lhe tinha oferecido.

Não era grande coisa.


Se tivesse que escolher, era o silêncio. O silêncio ruidoso dos passarinhos. Uma espécie de silêncio, que não há nas cidades. E o trinar das horas nos sinos da igreja, e das coisas que importam à comunidade: a chamar à missa, a anunciar um nascimento, uma morte, a alegria do casamento, a tocar a rebate para juntar as pessoas. É um jornal musical, a transmitir notícias fidedignas, sem pontos nem vírgulas, que são as partículas que geralmente as alteram, não as palavras. E as cores, os tons, os meios-tons, todos eles, a explosão de cores que entra pela casa adentro, que toma conta dos espaços e do interior da gente. Há muito menos gente, quase não há, mas cumprimentam, dez vezes num dia, se for caso disso. E quando acontece que se cruzam na rua, à porta de casa, do estábulo, no fontanário, os cumprimentos prolongam-se numa conversa sobre qualquer coisa, que não aborrece, porque é uma conversa quente, que alimenta os vazios, mesmo que seja sobre nada. E no verão são as festas, os emigrantes que enchem as casas vazias, as festas, os bailaricos, os namoros fugidios da juventude, os grandes e intermináveis campeonatos de dominó, das biscas lambidas, das suecas, enfim.

Uma reforma destas, é melhor que “gold”, é uma bênção. E já que se chamou o céu, benditos os anos de esforço, de poupança, as privações, o excomungo das tentações de um pequeno excesso – nem de vez em quando, nunca – poupar, poupar e finalmente conseguir ver realizada a casa na aldeia, o pinhal frondoso e fresco, a horta prenhe de vida, e tudo acabadinho de arder, ainda mal se tinha mudado com os seus pertences e esperanças, da cidade que o acolheu nos últimos sessenta anos, direitinho ao paraíso na terra.


Logo a ele, um técnico superior das florestas, aposentado mas técnico,um conhecedor, senão profundo, persistente (nunca meteu um dia de baixa) da ciência da conservação aleatória das espécies.

Vai pedir um subsídio.


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