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Mensagens

A mostrar mensagens de outubro, 2017

O HOMEM

Um tédio, escrever. Se era só para si, por que fazê-lo, se punha e dispunha em privado desse eco na cabeça? Por que passar ao papel quando se perde tanto na tradução do pensamento? Deu-se conta disso, não do tédio, quando se viu - uma vidência instantânea e sorte em tê-la -, atafulhado de coisas escritas. Uma acumulação como outra qualquer.  Não de colecionador.  Um juntar sem um objectivo, nas gavetas, em prateleiras, caixas. Para amanhã, que amanhã?  Guarda-se com medo de perder, ou então, por pudicícia, a modéstia dos ingénuos. No seu caso, não guarda por nenhuma razão especial a não ser o facto incontornável – para si – de que não consegue fazer outra coisa senão escrever, independentemente do descrédito de sentir que exerce com carácter de regularidade diária, uma pulsão, de absoluta inutilidade. Não a abandonar, destruindo o produto dessa promiscuídade, era a forma airosa -coisa neutra - de se desculpar por não ter desenvolvido habilidade para actividades

As coisas

As coisas acontecem assim, do nada, ao nada voltam quando se esquecem. É a sua convicção, ou crença: o poder reparador do tempo, fazendo a cosmética do sorriso, depois dos sobressaltos da vida, na expectativa de uma acalmia nas etapas finais do seu passeio existencial.

SITE SPECIFIC - CABINET DES CURIOSITÉS - O LIVRO

“O Site Specific Cabinet des curiosités, exposição dos esquecimentos, nasceu da necessidade de revisitar o meu trabalho de pintor.” Paulo Robalo O resultado da exposição na loja da rua da Atalaia do João Cale é agora compilado num livro com fotografias de Cláudia Teixeira, crónicas de Luís Robalo e a pintura de Paulo Robalo. Este livro de autor é a primeira aventura editorial do Passevite. Vamos editar 100 exemplares numerados e assinados pelo autor com 72 páginas e capa dura no formato A5. Os 10 primeiros exemplares vão ser vendidos acompanhados por uma impressão única em papel fotográfico e assinados no formato 20X30 cm.  O preço de venda de cada exemplar é de 20 euros e os 10 primeiros exemplares + 1 fotografia é de 60 euros cada. Estamos nesta fase a fazer pré-venda dos exemplares. Características da edição Edição: 100 exemplares Edição especial: 10 primeiros números + 1 fotografia Nº de páginas: 72 + Capa dura Papel: couché mate de 150grs Im

HOJE SENTOU-SE NO JARDIM E NÃO LEU

A mulher que lê livros no beiral que dá para o jardim, que tem um amante que já a visitou sem avisar, abraçando-a demoradamente, trocou hoje os dois por um telemóvel - parece ser, ao longe. Ainda assim, mantém o mesmo ar compenetrado e está sentada da mesma maneira: perna esguia, interessante, cruzada sobre a outra, escondida. De lado, com uma inclinação que mal se adivinha, colocando todo o ênfase do corpo no objecto da sua atenção, a precipitar-se sobre ele, exactamente do mesmo modo que faz quando tem um livro na mão. Talvez não se possa fazer uma relação directa, pode ser um mal-entendido, mas hoje, cruzaram o jardim mais homens jovens, de fato riscado e gravata de Ministério do que é habitual. Este tipo de cidadãos, não cruzam jardins, circundam-nos, daí a estranheza e a justificação para o relato do acontecimento.  O pequeno parque publico estava mais desagradável, uma aragem fresca que as pessoas já se tinham esquecido, sombras mais fortes, um desconforto outona

SENHOR, SÃO PARÁBOLAS

O Senhor H abandonou a ideia da morte, por resolução própria e sem intervenção nem pedido externo, no dia que compreendeu que o seu pensamento andava a ser intoxicado por essa recorrência mas o culpado era outro. Andava nisto há mais de vinte anos, sempre vestido de azedume, cor de breu petróleo. Fervilhante com a sua ideia na cabeça, terá mesmo pensado em cometer suicídio. Outras vezes, quando a crise agudizava, pensou em orquestrar um massacre colectivo, o que seria uma vingança apoteótica contra a frieza da sociedade, cuja artificialidade leva as pessoas ao engano: todos condenados à solidão, convencidos que andam acompanhados. O Senhor H era um pessimista, mas tinha que ser alguma coisa, e escolheu essa. Deu-lhe pela primeira vez o medo da morte, num dia que era noite, quando estava a dormir. Veio com o sonho, que é onde se geram todas as inevitabilidades excêntricas. Umas esfumam-se em nadas, outras acabam por se concretizar. Aconteceu-lhe esta desgraça

ADAPTAÇÃO DAS ESPÉCIES

Era uma viela resiliente.Pode-se afirmar dessa forma a capacidade vácua de um não-ser, ter uma característica só dos seres que são? Um calejo. As outras, vizinhas suas, foram evoluindo, devagar e ponderadamente, até serem ruas:  assim crescem as povoações. Esta deixou-se ficar como sempre foi: quase um impasse a acabar num eucaliptal cerrado. deu-lhe o mal da perguiça. Tendo só dois transeuntes ocasionais, não teve necessidade de se expandir. Sabemos então que viviam duas pessoas nesse quelho, desde que ambos se conheciam: a viela e as pessoas. Foram mesmo estas que a aplainaram, depois com gravilha,para usufruirem de um acesso livre de sua casa até ao arvoredo saudável, um tipo de jardim privado – dizem que fumigações com folhas de eucalipto são boas para as vias respiratórias - numa aldeia no campo. As pessoas fizeram as suas vidas - boas ou más não interessa -  e ultimamente porque já tomavam comprimidos demais e as energias eram escassas, não aguentaram o suf

PIANISTA

O pianista que toca piano no grande, alto, branco, frio, barulhento, hall do hotel, toca piano inutilmente. Toca e mal se ouve, não se ouve. Passa gente constantemente, com pressa para entrar, ou sair, para um lado e outro, um qualquer, não interessa, muitos, apressados e faladores. A porta é giratória pelo que gira, estonteantemente. O tráfego nos elevadores é um piscar de luzes e portas a abrirem e fecharem. Acumulam-se malas, umas melhores. Em condições normais o pianista não precisaria de  tocar piano só para si. Teria audiência. Toca, mas o automático movimento dos seus dedos mesmo que premindo teclas inexistentes no ar, em que local seja, seria suficiente para ele ouvir música, que lhe vem de dentro. O homem que é pianista e tem um fato decente escuro e gravata formal, tudo isto inutilmente, está ali, porque o valor do gás, da electicidade,  da água cada vez mais proibitiva, não lhe dá tréguas. Por esses motivos fortes, invisível aos olhos dos outros, t

DUAS DIMENSÕES DE UM SER

S ão as memórias que enturvam, Sou eu. Cataratas. Fotografia estereoscópica, Uma modernidade. Coloco esses óculos e vejo duas dimensões, de um antes que era só uma. Mesmo assim estão distantes. Fotografias de fantasmas. É a solidão: Ter uns óculos ridículos, não dar conta de estar ridículo, não colar nomes aos rostos que passam nessas imagens. Duas, sobrepostas, estereoscópicas. Modernidade. Velho, estereoscopicamente abatido.

AINDA DA MULHER QUE LÊ UM LIVRO NO JARDIM

Afinal ama um homem, a mulher que lê livros sentada no jardim. Está como se sabe imersa na leitura e por uma razão qualquer de uma espécie de radar seu, deu conta da aproximação - para outra não poderia ser - não espera ninguém, não o espera e por isso surpreende-se . Receptáculos um do outro, recebem-se abraçando-se de uma forma profunda, demorada, os corpos a usufruírem de estarem assim, pegados, unos. No tempo do abraço, ela manteve o livro com a página marcada. Eram portanto três: dois amantes e um livro. Por este exemplo se vê o valor imaterial de um livro, que ela não abandonou no momento em que abraçou o homem que afinal ama. Fica na sua atitude, a gerar créditos, não foi um mecanismo involuntário, foi uma ordem lúcida daquele, do seu, cérebro, que tem consideração pelos livros. Sobre a forma e o estilo como eles se encontraram no jardim pode-se dizer que foi num prolongado abraço, de olhos fechados. O que pode não querer dizer nada, mas geralmente qu