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Mensagens

A mostrar mensagens de setembro, 2017

TÉDIO

Sentou-se no banco do jardim a ensair o discurso de domingo e os pássaros entediaram

BENTA, UMA TERRORISTA ACIDENTAL

Como é de imaginar, o gabinete do chefe das secretas, o chefe mesmo, a quem chamam de Director, é o ambiente mais asséptico que existe em todos os ambientes-gabinetes públicos, todos mesmo, incluindo os blocos operatórios e os laboratórios sofisticados. Não é dos líquidos e dos pós, que esses também não se olha a despesa, é de ser um local onde não entra nem sai uma aragem que seja, muito menos uma palavra mal balbuciada, que escape aos trambolhões e venha a causar um tsunami seco. Há gente própria, apropriada dizendo assim, com cursos para isso, cuja carreira profissional é monitorizarem a tempo inteiro a salubridade, higiene e estanquicidade do gabinete do senhor Director das coisas secretas. Não se sabe se são felizes e realizados, cumprem essa função, vão para suas casas, têm ou não família, e hão de vociferar uma que outra vez em frente a um jogo de futebol. Do Director é que nada se sabe. Não é visto em lado nenhum. Ouvido ainda menos. Nada. Diz-se que é ubíq

CAUDILHOS CANOROS

Nesta coisa do dizer, anunciando pensamentos que com a melhor das intenções, consideramos a primeira vez de serem ditos, e que por isso virá uma medalha de glória dos deuses - coisa unicamente sua, um visto dourado, que não caduca - podíamos espantar-nos, se com alguma humildade, refreássemos a vontade de anunciar ao mundo, as afinações de bardos que julgamos ser. Sintonias, distonias, os agudos para um lado, os gravíssimos para outro. Versitos tão lindos a rimarem na perfeição. Uma confusão que soa bem, nas ofuscações da vaidade. A honestidade límpida do silêncio. O diamante de sabedoria, não há nada a dizer, quando não temos nada a dizer, e não o vemos.

ONTEM – FOLHETIM FINAL, OU QUASE.

E termina o dia. Quando as nuvens não criam véus e tapam a luz do sol que se despede das gentes deste lado, seja em que mês do ano for, é eminente a possibilidade de ao pousar os olhares no céu, se assistir a um magnífico espectáculo com os cenários que vestem a escapada temporária do astro rei para o lado oposto do mundo. A queda do pano é muitas vezes tão deslumbrante como foi a actuação em palco. É um caso raro em que um adereço se configura em protagonista principal. Mas há meses do ano, em que as cores do ocaso são diferentes, outras, difíceis de dizer em palavras, só vendo. Setembro e Outubro. São cores que nos impregnam com brilhos de uma certa nostalgia, estranha, não propriamente desconfortável – pelo contrário – um sentimento de leve tristeza feliz. O prenúncio dos tons escuros que se aproximam, a despedida da amarelenta, forte luz do Verão, nas melhores versões das iridescências, sentidas dessa forma nesse sentimento andrógino. Termina o dia no pátio e q

O PASSARINHO

Vi um passarinho morto, Num beiral de um passeio. Estava hirto, o passarinho, Mas era verde, e algumas asas, poucas, amarelas. Estava morto mas era bonito. O que não é normal dizer quando se está morto. Encontra-se de tudo nas ruas, E os passarinhos são vistosos voando ou não, Dependendo do apreço que temos pelo verde, as outras cores, e os sinais de vida verdadeira, ou de morte obrigatória.

PRAGA URBANA

Algumas árvores nas cidades estão sinalizadas. Algumas mas mesmo assim é pouco. Temos que desconfiar. Primeiro está a nossa segurança e a dos nossos. Mesmo sinalizadas, causam estragos, Beliscam a auto-estima dos autarcas e também matam pessoas. Estão identificadas com uma cruz, mas quem o fez não as abateu por ser tíbio. Devemos sempre desconfiar. E denunciar. Porque ainda há árvores na cidade não sinalizadas. Seria muito mais seguro se não houvesse árvores, Mas os autarcas são frouxos e as pessoas têm um carácter débil e fraquejam. Têm pena, Até das inúteis das árvores

O SONHADOR

Alfredo Manuel espera que o mundo não acabe hoje  porque tem um sonho, dos que estão em falta, e quer realizá-lo.  Em todo o caso, a acabar, nunca acabaria para todos ao mesmo tempo, e até pode calhar ser dos últimos: a acabar com o mundo. Ele pertence aquele grupo talvez reduzido de pessoas, que dá vida aos sonhos: é um pragmático.  Esse seu sonho não é ideológico, não é excêntrico, nem se aproxima vagamente de uma utopia. Não é um egoísmo ou uma derivação narcisista. É uma ideia simples, tão simples que se pode perguntar porque motivo ainda não o concretizou. Pode ser que não seja assim tão simples e ele seja uma pessoa com boas intenções o que por vezes não basta. Alfredo Manuel quer fabricar a uma escala de linha de montagem com produção diária de centos de milhões, o comprimido da felicidade: o maior dos mais inantigíveis bens em estado de fruição permanente. Estão identificadas as hormonas do prazer e do bem-estar, sabem-se os assuntos que arreliam os homens, desc

O GINASTA MÍSTICO

Homem com umas consideráveis dezenas de anos. Uma cruz de madeira, pequena, com suficiência de ser visível relativamente longe, pende-lhe do peito. No mesmo local, o homem portador da cruz ao peito, cirandando neste jardim público onde num dia recentemente passado , uma mulher jovem com aspecto disso, na hora do seu almoço e de outros que  ali estavam pelo mesmo motivo, foi apanhada supostamente a ler um livro - tinha-o aberto pousado castamente sobre o  regaço e ela parecia embrenhada nele.  Cena pouco comum que ficou notificada em instantâneo próprio de um mirone possivelmente inquinado nas apreciações que faz sobre os transeuntes - descomplicados eles, ele não -, com que se cruza. Não há relação estabelecida entre os dois, só o local é o mesmo, e aparentemente acontecem fenómenos fora do comum neste nó da cidade, na realidade uma quase praceta com relvado e parque infantil, ambos em plano inclinado, a inclinar para quem desce no sentido da igreja da nossa Senhora de Fátima.

INTERMITÊNCIAS DE UMA VIDA

É um local bem arranjado. Não é bem um jardim, pode vir a ser no futuro. Basta um quiosque com esplanada, bancos aleatoriamente colocados, talvez um pequeno parque infantil, e ganha a identidade de um parque urbano, nome dos boletins camarários por que são conhecidos os jardins, que também já foram parques públicos. Na realidade, é um aproveitamento inteligente de um espaço aparentemente inútil. Explicando melhor, o que existe escondido dos olhos de quem passa - terra adentro - é um reservatório de água potável, que serve os habitantes da cidade. À superfície, anos e anos que se perdeu a conta de quantos, primeiro foi um parque de estacionamento de autocarros dos transportes públicos, depois um relvado aparado para receber bolas de golfe expelidas por utentes carregados de stress e das adrenalinas diárias de negócios de risco e de especulação - que não vingou nessa missão humanitária, por a obra ter sido embargada. Depois, foi um depósito de ervas várias e daninhas, desc

PAUSA

Uma semana com expectativas, quando o verão começa a preparar a bagagem, em que tudo fica menos extremado, e as condições gerais do mundo suavizam. Um calor que agora se aceita melhor, uma luz que já não encadeia, menos amarela, purificada de partículas suspensas que sujam o ar. As brisas sem chegarem a ventos, refrescam os finais de dia. Neste final de verão, as bombas ainda não caíram, nem morreram inocentes. Há palavras, poucas mas há, que ainda podem decidir tudo. E tudo, por exemplo mais que suficiente, pode ser, Que amanhã seja de novo um dia assim, na paz do cair do pano no lusco-fusco, a pensar nas coisas da vida que não gostaríamos ter de viver.

ONTEM - FOLHETIM 8

…Ela inclinou-se propositadamente para o beijar na cara fazendo antever o que seria uma escalada gloriosa das suas mãos àqueles montes divinos, para pagar uma qualquer promessa, uma purificação. A ver no que vai dar. Deu em nada, a Teresa beijou-o de raspão e foi brincar com a sua irmã e as amigas, fechadas no quarto em sussurinhos irritantes de jovenzinhas. Algumas quase tinham bigode como as criadas, só a Teresa era bonita. Era esse agora o seu pensamento, a sua vingança mental contra todas as raparigas, conhecidas e desconhecidas e até estrangeiras: apor-lhes pilosidades intensas no buço. Uma desculpa a si mesmo pelo facto de a Teresa não lhe ter proporcionado a realização dos sonhos em folhetins diários, dos últimos dias, em que se imaginava a afagar as linhas onduladas de um corpo jovem belo, grego, tendo  arrepios internos e externos de intensidade nunca sentida, a primeira vez, parece que o universo inteiro vai explodir em fogo-de-artifício.  Apesar da frustra

CONFIDÊNCIA

Sobre a remota possibilidade de um equívoco.  Não faço poesia, pela responsabilidade que não posso assumir,pela construção honesta de um simples verso. A poesia é feita por seres que desconheço a designação, mas que não são humanos. Sendo-o eu, esclareço que escrevo banalidades com frases separadas por linhas,só porque me orientam melhor no espaço,  e porque eventualmente, se forem lidas por alguém, facilita-lhes a aproximação dos óculos e a focagem. Nada mais do que isso. Esta é a minha intenção de poesia. Ah, e não sei rimar, o que para muitos é um pecado capital.

SETEMBRO E LISBOA

      Créditos Helena Simões da Costa S ente-se o epílogo do verão na acalmia do calor ao entardecer. Os dias equilibram-se com as noites, as manhãs estão mais frescas. Lisboa vive a sua glória, os melhores ocasos do ano. O sol despede-se alinhado com a entrada do Tejo no mar, fingindo-se debruçado sobre uma janela que não existe à sua espera. O céu deixa de ser o pouco mais que azul, dos dias de quotidiano obrigatório e projecta uma profusão desbragada de cores intensas, numa luminescência teatral. O prémio para a mais bela cidade dos arredores reside nessa excentricidade sua, que é minha e intransmissível, sob a perspectiva do meu sentido de posse. E, Se um dia, nos meus dias, esse espectáculo esmorecer, tenho a projecção da excentricidade colada na parede que me reveste o interior. A minha decoração privada para momentos de névoa intensa, que são bonitos, mas insegu