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ONTEM - FOLHETIM 5






A escola não tinha campainhas, era por intuição, mais ou menos, que se acertava o tempo certo do recreio.

Mais ou menos três da tarde. Correm, quase num andar correr contido - porque são meninas - para o pátio, correm elegantemente.

Ainda não estão todas e entra em cena o Stevens, um modo de dizer. Ele não está presente, a sua voz.  Os argumentos todos para as arrumar à primeira com o primeiro argumento.

Como disse alguém, que tudo disse o que havia de interessante e bem pensado para se dizer de uma vez por todas sobre todos os assuntos do mundo, as alunas dóceis que naquele tempo tinham que ser dóceis, começaram por estranhar comportadamente a música. Segredaram coisinhas suas, inseguranças - em situações assim falam-se coisas - e por fim entranharam, tomaram gosto.

Depois desse primeiro momento, tenso, indeciso, os radialistas animados, deram o seu melhor: a playlist era pôr todos os discos a tocar, uns após os outros.

Salvador, locutor, só fazia separadores e noticiário, sobrava tempo e enquanto o António limpava discos, punha discos, tirava discos, ele perspegava o olho na única nesga do buraco negro onde estava colado o altifalante que emitia o som para o pátio. Tomava o pulso da audiência, fazendo nota das reacções.Estudo das tendências do consumidor, inovadores.

O objectivo era hipnotizá-las, trazê-las ao estúdio, deixá-las pelo beiço, e depois virem cá para fora gabarem-se de galãs e de famosos, inchadíssimos, ensaio precoce das inseguranças e das estimas pessoais que se alimentam nesta idade e vincam as suas marcas mais tarde.

A rádio é um sucesso que ultrapassa todas as expectativas, é de longe a melhor ideia que eles tiveram. As meninas quando perderam a timidez inicial começaram a passar por baixo da porta bilhetinhos dobrados com discos pedidos. Uma e outra vez apareciam flores e corações desenhadas com lápis de cor. Com a animação da música elas brincavam melhor, e dançavam. Até as suas mães vieram ver o fenómeno e a Dona Elvira, em pessoa, esteve no estúdio – quer dizer à porta, porque no espaço exíguo mal cabiam três crianças. Foi entrevistada e louvou o trabalho, considerando-o de interesse público ou mais ou menos isso.

Durante o período, entre a Páscoa e as férias grandes do Verão, aumentaram as audiências. Os miúdos da radio diversificaram a programação, agora com rubricas para os irmãos e música popular para as criadas, que nos breves intervalos entre refeições, com a louça lavada e os panos a secar,  repousavam os seios fartos nos parapeitos das janelas das cozinhas,  deixando-se ficar, inertes, sonhando com os magalas do Regimento de Lanceiros,  nas suas saídas de domingo, nas intromissões e descaramentos das mãos nos bancos de jardim, nos apertos, encostadas a uma árvore ou numa esquina discreta de um prédio. Embaladas nos sons maviosos que imanavam da casinhota nº10 pensavam nessas coisas e tinham momentos de felicidade. As que não foram benditas com os atributos da beleza, verrugosas algumas, também sonhavam, mas não se sabe com o quê, talvez o mesmo.

Tudo corria bem, até que um houve um mal entendido, que arruinou o sucesso deste empreendedorismo, esquisso promissor de uma carreira de futuro.

Não se pense que todas as meninas da escola eram santinhas, de não partirem sequer um pires, à mão. Recatadas era uma obrigação, mas havia e não se dizem nomes, quem não perdia uma oportunidade para uma experimentação mais arrojada. Se fosse hoje dizia-se curtir, nesse tempo não se dizia, escondia-se.

Deu-se pois o infortúnio da Carolina, uma loira angelical, que arriscava no limite a usar a saia um pouco mais que acima do joelho, ter sido convidada pelos donos da Estação a uma visita às instalações, com direito a explicação detalhada do funcionamento complexo de uma emissora de rádio.

Os ânimos exaltaram-se, o ambiente pôs-se agradável e a pequena, imbuída na missão da Eva, angariadora de pecado, levantou a saia e mostrou umas gloriosas cuecas de algodão com margaridas. Não havendo testemunhas imparciais, é difícil afirmar que esse gesto tenha sido propositado e provocador. Na realidade esse acto apanhou desprevenidos os radialistas, que ficaram sem  reacção, aparvalhados portanto.

Foram no entanto as primeiras cuecas de mulher, ao vivo, das suas vidas e uma experiência destas nunca mais se esquece. Cuecas gloriosas.

Se existe felicidade suprema, aquele primeiro episódio de sensualidade, fica no albúm em posição de destaque. A partir daí foi sempre a piorar.

Tudo se resumiu a nada mais que isso: olhares engasgados.

Uma semana depois os Directores foram chamados ao gabinete da Directora, onde se encontrava sentado numa posição hirta para ser confortável, quase empalado, um homem de bigode fino a contornar ligeiramente a comissura do lábio . realçava também, pela estranheza, o cabelo rigorosamente acachapado pela brilhantina, a fazer uma imitação perfeita dos heróis do cinema mudo. Vestia fato negro, não era um bom sinal.

Na continuação de um silêncio cortante, propositado, sem que o personagem abrisse a boca, nem sequer levantasse o olhar da fixação de um ponto não definido algures no chão à sua frente, a Professora ditou um veredicto terrível: os meninos tinham andado a levantar da saia da filha do senhor Inspector. Intencional. Fizeram tentativas documentadas pelo testemunho verbal da vítima, de tocar nas suas pernas virginais, ainda puríssimas. Iriam ser severamente castigados para se limpar essa nódoa incómoda na honra da púbere, pequena andorinha inocente que foi obrigada depois de trancada pelos meliantes na casota nº 10, a actos de indecência. Os pais dos meninos receberiam a notificação do sucedido. Em viva voz e nesse mesmo dia, a Elvirinha iria falar com as suas mães.

A medida de coação dos tribunais familiares foi um jejum prolongado de idas ao pátio e sem contestação. A Elvirinha foi suficientemente explícita com os pais dos abusadores, lembrando que estes não vão gostar de terem que explicar àquele senhor porque é que os seus filhos passam lixo revolucionário (já não é a primeira vez que aparecem panfletos comunistas espalhados no chão do pátio e inclusivamente já foram vistos a serem introduzidos por mão fantasma debaixo das portas), e onde arranjaram aquelas músicas que poluem as personalidades ainda em formação e frágeis das crianças, músicas comunistas, como os panfletos.

Com uma explicação destas não há quem não acate tudo.

Eles não tinham feito nada de mal. Era ela a provocadora. Tiveram uma visão deslumbrante do paraíso, nada mais. Ficaram aflitos sem saber como reagir, e simplesmente olharam, um com um disco de vinil na mão, o outro sem saber o que fazer ao microfone.

Mas o mundo dos adultos é injusto, eles não entendem as crianças.

 As meninas da Dona Elvira perderam uma excelente rádio local que as entretinha enquanto saltavam ao elástico e jogavam a cabra-cega, mas a bola continuou a ir parar ao seio delas na expectativa de uma devolução com um sorriso.


Depois do recreio da tarde e no rescaldo, e por falar nisso, acontece o treino semanal da corporação de bombeiros juniores. Hoje vai a provas para admissão o principiante Augustinho, primo por afinidade do António, já que a sua mãe vive em casa dos avós do António e é uma grande, grande mesmo, amiga do avó dele.

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