A escola não tinha
campainhas, era por intuição, mais ou menos, que se acertava o tempo certo do
recreio.
Mais ou menos três da
tarde. Correm, quase num andar correr contido - porque são meninas - para o
pátio, correm elegantemente.
Ainda não estão todas e entra
em cena o Stevens, um modo de dizer. Ele não está presente, a sua voz. Os argumentos todos para as arrumar à primeira
com o primeiro argumento.
Como disse alguém, que tudo
disse o que havia de interessante e bem pensado para se dizer de uma vez por
todas sobre todos os assuntos do mundo, as alunas dóceis que naquele tempo
tinham que ser dóceis, começaram por estranhar comportadamente a música. Segredaram
coisinhas suas, inseguranças - em situações assim falam-se coisas - e por fim
entranharam, tomaram gosto.
Depois desse primeiro
momento, tenso, indeciso, os radialistas animados, deram o seu melhor: a
playlist era pôr todos os discos a tocar, uns após os outros.
Salvador, locutor, só fazia
separadores e noticiário, sobrava tempo e enquanto o António limpava discos,
punha discos, tirava discos, ele perspegava o olho na única nesga do buraco
negro onde estava colado o altifalante que emitia o som para o pátio. Tomava o
pulso da audiência, fazendo nota das reacções.Estudo das tendências do
consumidor, inovadores.
O objectivo era
hipnotizá-las, trazê-las ao estúdio, deixá-las pelo beiço, e depois virem cá
para fora gabarem-se de galãs e de famosos, inchadíssimos, ensaio precoce das
inseguranças e das estimas pessoais que se alimentam nesta idade e vincam as
suas marcas mais tarde.
A rádio é um sucesso que
ultrapassa todas as expectativas, é de longe a melhor ideia que eles tiveram.
As meninas quando perderam a timidez inicial começaram a passar por baixo da
porta bilhetinhos dobrados com discos pedidos. Uma e outra vez apareciam flores
e corações desenhadas com lápis de cor. Com a animação da música elas brincavam
melhor, e dançavam. Até as suas mães vieram ver o fenómeno e a Dona Elvira, em
pessoa, esteve no estúdio – quer dizer à porta, porque no espaço exíguo mal
cabiam três crianças. Foi entrevistada e louvou o trabalho, considerando-o de
interesse público ou mais ou menos isso.
Durante o período, entre a
Páscoa e as férias grandes do Verão, aumentaram as audiências. Os miúdos da
radio diversificaram a programação, agora com rubricas para os irmãos e música
popular para as criadas, que nos breves intervalos entre refeições, com a louça
lavada e os panos a secar, repousavam os
seios fartos nos parapeitos das janelas das cozinhas, deixando-se ficar, inertes, sonhando com os
magalas do Regimento de Lanceiros, nas
suas saídas de domingo, nas intromissões e descaramentos das mãos nos bancos de
jardim, nos apertos, encostadas a uma árvore ou numa esquina discreta de um
prédio. Embaladas nos sons maviosos que imanavam da casinhota nº10 pensavam
nessas coisas e tinham momentos de felicidade. As que não foram benditas com os
atributos da beleza, verrugosas algumas, também sonhavam, mas não se sabe com o
quê, talvez o mesmo.
Tudo corria bem, até que um
houve um mal entendido, que arruinou o sucesso deste empreendedorismo, esquisso
promissor de uma carreira de futuro.
Não se pense que todas as
meninas da escola eram santinhas, de não partirem sequer um pires, à mão.
Recatadas era uma obrigação, mas havia e não se dizem nomes, quem não perdia
uma oportunidade para uma experimentação mais arrojada. Se fosse hoje dizia-se
curtir, nesse tempo não se dizia, escondia-se.
Deu-se pois o infortúnio da
Carolina, uma loira angelical, que arriscava no limite a usar a saia um pouco
mais que acima do joelho, ter sido convidada pelos donos da Estação a uma
visita às instalações, com direito a explicação detalhada do funcionamento
complexo de uma emissora de rádio.
Os ânimos exaltaram-se, o
ambiente pôs-se agradável e a pequena, imbuída na missão da Eva, angariadora de
pecado, levantou a saia e mostrou umas gloriosas cuecas de algodão com
margaridas. Não havendo testemunhas imparciais, é difícil afirmar que esse
gesto tenha sido propositado e provocador. Na realidade esse acto apanhou
desprevenidos os radialistas, que ficaram sem
reacção, aparvalhados portanto.
Foram no entanto as
primeiras cuecas de mulher, ao vivo, das suas vidas e uma experiência destas
nunca mais se esquece. Cuecas gloriosas.
Se existe felicidade
suprema, aquele primeiro episódio de sensualidade, fica no albúm em posição de
destaque. A partir daí foi sempre a piorar.
Tudo se resumiu a nada mais
que isso: olhares engasgados.
Uma semana depois os
Directores foram chamados ao gabinete da Directora, onde se encontrava sentado
numa posição hirta para ser confortável, quase empalado, um homem de bigode
fino a contornar ligeiramente a comissura do lábio . realçava também, pela
estranheza, o cabelo rigorosamente acachapado pela brilhantina, a fazer uma imitação
perfeita dos heróis do cinema mudo. Vestia fato negro, não era um bom sinal.
Na continuação de um
silêncio cortante, propositado, sem que o personagem abrisse a boca, nem sequer
levantasse o olhar da fixação de um ponto não definido algures no chão à sua
frente, a Professora ditou um veredicto terrível: os meninos tinham andado a
levantar da saia da filha do senhor Inspector. Intencional. Fizeram tentativas
documentadas pelo testemunho verbal da vítima, de tocar nas suas pernas
virginais, ainda puríssimas. Iriam ser severamente castigados para se limpar
essa nódoa incómoda na honra da púbere, pequena andorinha inocente que foi
obrigada depois de trancada pelos meliantes na casota nº 10, a actos de
indecência. Os pais dos meninos receberiam a notificação do sucedido. Em viva
voz e nesse mesmo dia, a Elvirinha iria falar com as suas mães.
A medida de coação dos
tribunais familiares foi um jejum prolongado de idas ao pátio e sem
contestação. A Elvirinha foi suficientemente explícita com os pais dos
abusadores, lembrando que estes não vão gostar de terem que explicar àquele senhor
porque é que os seus filhos passam lixo revolucionário (já não é a primeira vez
que aparecem panfletos comunistas espalhados no chão do pátio e inclusivamente
já foram vistos a serem introduzidos por mão fantasma debaixo das portas), e
onde arranjaram aquelas músicas que poluem as personalidades ainda em formação
e frágeis das crianças, músicas comunistas, como os panfletos.
Com uma explicação destas
não há quem não acate tudo.
Eles não tinham feito nada
de mal. Era ela a provocadora. Tiveram uma visão deslumbrante do paraíso, nada
mais. Ficaram aflitos sem saber como reagir, e simplesmente olharam, um com um
disco de vinil na mão, o outro sem saber o que fazer ao microfone.
Mas o mundo dos adultos é
injusto, eles não entendem as crianças.
As meninas da Dona Elvira perderam uma
excelente rádio local que as entretinha enquanto saltavam ao elástico e jogavam
a cabra-cega, mas a bola continuou a ir parar ao seio delas na expectativa de
uma devolução com um sorriso.
Depois do recreio da tarde
e no rescaldo, e por falar nisso, acontece o treino semanal da corporação de
bombeiros juniores. Hoje vai a provas para admissão o principiante Augustinho,
primo por afinidade do António, já que a sua mãe vive em casa dos avós do
António e é uma grande, grande mesmo, amiga do avó dele.
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