O maior mistério de todos os tesouros é não se saber onde
estão, pairarem escondidos do olhar, com inimagináveis riquezas que não se sabe
se sim ou não. Por isso mesmo porque não se veem é que soltam as imaginações,
desabridas, em cavalgadas sem rédeas. Se há coisa que vem em qualquer momento a
jeito de todas as mentes menos as diminuídas, é a invenção de uma bela e
robusta história. Entretém, preenche, justifica, dulcifica.
Os miúdos têm uma curiosidade insaturável.
Há casinhotas completamente desinteressantes e outras que despertam
sururus, mistérios insondáveis. Estão em fila e têm as portas de madeira
pintadas de amarelo, canário. Estão numeradas ou não, talvez. De todas, a que
se destaca é a número três, número que deus fez e neste caso o que calhou ao
fotógrafo, que a habita (uma forma de dizer) e vive com a família no
rés-do-chão esquerdo. Não é um homem de simpatias fáceis.
Um fotógrafo tira fotografias, mas o senhor Casimiro nunca foi
capatdo na via pública, com uma máquina fotográfica a tiracolo. Quanto a
colocar o óculo na mira de um dos seus olhos astigmáticos ensaiando um
instantâneo, ainda menos. Exercendo esta profissão e não ser visto com uma
câmara na mão, pode vir em desabono da sua pessoa, mas não era esta a sua
especialização.
Com um nome como o que lhe deram pode levar-se a pensar que se
trata de um ser mirrado, corcovado. Um lingrínhas
? Não. Era um alentejano convincente. Os nomes nem sempre correspondem à
verdade dos factos.
Não tirava fotografias
na rua não fazia reportagem, nem casamentos, era um profissional de estúdio, o
que quer dizer que nas traseiras do balcão de atendimento, na porta ao lado do
prédio ao lado, dispunha de um moderno atelier
fotográfico. As paredes eram brancas e despidas. Como mobiliário um banco e uma
máquina preta com um olho grande, montada num tripé de madeira. Numa das
paredes, havia um sistema montado no tecto com vários tubos e roldanas. Daí
fazia descer, conforme o pedido ou enquadramento artístico que ele próprio
decidia, qual o cenário apropriado ao cliente. Tinha-os bucólicos, campestres,
até navais com fundo de mar. Todos os cenários eram coloridos mas o produto
final saia a preto e branco. Ela podia pintar lábios e dar a aproximação da cor
dos olhos. Uma ou outra flor no cenário do jardim, também as pintava. Não mais
do que isso.
Ao lado do estúdio havia uma sala-laboratório de revelação
totalmente obscura. Vendo a coisa à distância, era uma cena esotérica, uma
espécie de alquimia o que se passava nessa sala e ninguém sabia, ou melhor, via,
para poder contar aos outros, que se roíam em comentários e conjecturas.
O Pedro é o filho do Casimiro, vai ser médico cirurgião, mas
já de pequeno que é obeso e parecendo que não, influi e muito na imagem que se
faz de um médico. Está a terminar o liceu com notas sofríveis mas não há ainda
necessidade de ter vinte valores e ser um alienígena, comummente designado por
“marrão”, para entrar no curso de medicina. Já não brinca no pátio, pertence ao
turno anterior que deu mais médicos e inclusive um general a sério, dos que
decoram o peito com filas sobrepostas de medalhas de grande valor.
Anda entretido com outros afazeres, não se conta com a sua
presença física no pátio, daí não se lhe poder pedir para abrir a arrecadação e
saciar a curiosidade mórbida que achaca a rapaziada, mais os do símbolo da seta,
que as do símbolo do mais, essas com outras indiscrições.
Do pouco que se pode ver no equilíbrio instável das cavalitas,
o interior da número três está forrado de prateleiras cheias de frascos de
vidro com criaturas (diz-se que são criaturas, porque têm esse feitio, de
criaturas que um dia já foram vivas) mortas, conservadas em formol (sabe-se
agora). É um museu das estranhezas, ou o centro de investigação avançado do
Pedro, uma incógnita a juntar a tantas, a dar um novelo de proporções
inesperadas nestas cabecinhas, tenrinhas.
Como é muito escuro e as lanternas disponíveis desgraçam o
mesmo combustível que alimenta as telefonias que se usam à noite na cama para
ouvir os programas radiofónicos de sucesso, tem que se fazer uma gestão do
consumo. Entre escolher alumiar uma colecção de possíveis fetos que não se sabe
serem verdadeiros e ouvir música na cama, a última opção é uma escolha prioritária.
Os olhos focam mas veem difusamente, é difícil perceber de que
animais se trata, se é de pequeno porte ou há mamíferos e se forem humanos, é a
apoteose. Isso sim elevaria a categoria do pátio para níveis superiores.
Espalhava-se a notícia e é ver o bairro inteiro a querer frequentá-lo. Pode-se
mesmo via a cobrar bilhetes.
Tanto se desejou que aconteceu. Quem julga que o poder da
mente a fazer um pedido para que algo aconteça, com muito empenho e fé, é um
embuste, está redondamente enganado. As crianças estão constantemente a fazer
estes exercícios tântricos do controlo da mente e conseguem. Os adultos só
falham porque desejam e pedem parvoíces, e nisso não há concentrações de
energia espiritual que os valha.
Um dia a porta do museu dos mistérios estava aberta. Dada a
proximidade do quartel-general, pede-se uma acção de penetração bem sucedida
com uma planificação rigorosa dos passos a dar no sentido de ser eficaz e sem
intercessão por parte do inimigo, salvo seja. Nesse sentido as crianças
sentaram-se e ficaram longamente sentadas a discutirem o que fazer.
O Rui ficou de ouvido colado à porta da cozinha da mulher do
Casimiro que era local onde ele não punha os pés, porque era fotógrafo e não
cozinheiro. Se forem detectados ruídos persistentes no interior – de panelas ou
assim - uma sinalética gestual previamente combinada, aborta a acção dos
penetras. Foi difícil a negociação, queria ser ele a entrar na casota do
alibaba. Ficou acordado que na próxima missão ele seria o herói.
Cai o silêncio habitual do momento anterior ao momento da
acção. O Nuno e o Paulo avançam ziguezagueando porque ouviram dizer que era
assim, e entraram na caverna dos segredos. Uma eternidade, eles lá dentro e o
resto da trupe escondida nos recantos, nos corredores, nas escadas de serviço
que ligam os andares do prédio com o terraço.
É banal dizer-se que nestas coisas o tempo não se mede, se
muito ou pouco, a fatia dele que entremeia o episódio é uma eternidade.
Saíram de lá barrigudos, mas não, é o espólio, escondido debaixo
das camisolas. Reunem no vão de escadas que liga o segundo com o terceiro
andar. São dois frascos de vidro com uma tampa vedada por uma anilha de
borracha. Estão cheios de um líquido transparente. Não é água. Num boiam
cavalos marinhos, três, evidentemente mortos e conservados no líquido que não
se sabe o que é. No outro frasco, um pequeníssimo ser, parece um girino, maior,
com dois pontos pretos redondos, são os olhos. E um risco, talvez um esboço de
boca. Que ser foi este? Um homenzinho? Um humuncúlo? Um golem da cabala
judaica? Tudo isto são palpites, desvios de muita leitura acumulada e que
depois deriva para ligações mentais inconsequentes.
Os miúdos para além de curiosos têm uma imaginação inesgotável.
Inventam a mil, milhares de coisas interessantes ou estapafúrdias. Originou-se logo um
enunciado de possibilidades e pistas e explicações acerca do objecto em causa.
Todos a falarem ao mesmo tempo.
Era um feto. Mas de quê? Cão. Não podia ser, o que se afigura
ser a cabeça é demasiado arredondada para o que se presumia ser um feto de cão.
Macaco. Pode ser, a não ser que seja mesmo o que estamos a pensar. Um feto
humano!
Ele tinha um feto humano morto e embalsamado na arrecadação do
prédio? E onde o arranjou? Seria da família? Um aborto clandestino? Devassou-se
uma campa de cemitério? Todos queriam ver mas ninguém queria tocar no frasco. Asco,
repugnância.
Passam poucos minutos do meio-dia e vive-se um alvoroço de
grandes proporções e excitação. O dia do treino dos homens dos bombos a cavalo
já de si, é um momento especial e depois disso uma descoberta destas! Uns
assustaram-se e querem ir para casa, há quem conte às empregadas, que crédulas
que são, contam às patroas e estas, acreditadas também, contarão aos maridos,
cheguem eles a casa, ao fim do dia com paciência de as ouvir, ou fingindo que
as ouvem.
Esgotada a novidade o problema agora é o destino a dar ao
frasco, ninguém está com coragem de voltar ao casinhoto e ainda para mais com
um defunto na mão.
Alguém atira o frasco para o terreno baldio onde treina a GNR.
Fora dos trilhos marcados pelos cavalos, as ervas daninhas crescem abundantemente,
ninguém vai descobrir um cadáver tão minúsculo.
Assim se faz e se esquece. Os rapazes jogam agora à bola,
todos contra todos com o Zé à baliza. As meninas brincam a saltar a corda. Em grupos
de duas e três aumentam a dificuldade dos saltos, é quase uma dança bem
coreografada. Grita-se tanto.
Tempo do almoço. Mais descontraído do que o jantar. A estas
horas unem-se as mulheres e as crianças. As relações simplificam-se, são mais
carinhosas. É bom.
A sesta é um contratempo que não se pode evitar: mesmo
fingindo que se está a dormir, acaba-se por adormecer à força de descerrar a
persiana dos olhos. O tempo de cada uma depende do metabolismo das casas,
normalmente é uma hora. O melhor da sesta é que quando se acorda com a
recompensa de um copo de leite e bolachas maria, com ou sem manteiga, prefere-se
com.
Nos longos e intermináveis dias de verão, quando as férias são
eternas, passadas em ambientes de quietude, no campo, fazem-se sestas
colectivas, pequenos e grandes numa chalaça pegada. Não se dorme e os adultos
condescendem, amaciados por não terem preocupações nem urgências a acudir.
O verão é a época dos dias simpáticos que não acabam.
No período da tarde, uma radio local vai fazer a emissão
inaugural, numa actuação muito especial para as meninas da Dona Elvira, que
ainda não sabem que vão ter uma surpresa.
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