As balas traçavam uma ponte aérea sobre os telhados das casas,
numa margem para a outra da rua vazia pelas razões de haver tiros com ricochete
para o sentido contrário e perigosos.
Mantinha-se operacional – operacional? – um posto militar, no
início da rua, do lado nascente. Não se sabe porque não havia outro no lado
poente, não fazia sentido. Provável escassez de meios humanos, tinha morrido
muita gente, falta de recursos.
A colónia foi entregue
com hastear oficial da bandeira na capital, trocaram-na por uma nova, a nossa é
muito mais bonita. Encenou-se uma passagem pomposa de testemunho, com apertos
de mão e discursos. Agora a guerra ficou toda para eles, caseira.
No posto militar daquela rua duma cidade em África que tinha o
nome de uma cidade de Portugal, esperava-se pela evacuação, os militares não
saiam de dentro do abrigo, era muito azar acabar a guerra e ser-se atingido
depois disso. Como se contaria aos vizinhos, caso se sobrevivesse? Soava a
anedota, não ficava bem.
Já que se tinha chegado até ali, era de aguentar e esperar um
pouco mais, sem se armarem em heróis de nada.
Primeiro evacuavam-se os civis, os militares ficavam no cumprimento
das suas obrigações até ao último minuto. Tudo isso seria assim se tivesse
havido método e planeamento, não houve. A evacuação transformou-se numa fuga do
salve-se quem a mais pode, aumentando os dramas que se viveram em momentos que só
quem os viveu os imagina. Desencontros, as perdas, os equívocos do tamanho das
crateras das bombas.
É essa precisamente a palavra que melhor define a guerra: “equívoco”.
Um engano, neste caso propositado. Ou desengano.
Para passarem o tempo sem mais traumas, os militares do posto que
aguardavam pelo regresso a casa, assistiam ao conflito que agora era dos
outros. Assistiam a um estilo de pingue-pongue balístico, delimitados os dois
lados pela rua a fazer de rede invisível. Tentavam sair o menos possível do
posto, e que os beligerantes não se lembrassem deles. Há malucos para tudo e há
azares que chegam tarde, mesmo quando se pensa que se está livre de um
acontecimento aziago.
Chego ao posto depois de dois dias na companhia da solidão de
uma viagem difícil, carregada de recordações que não pedi para as ter naqueles
momentos. Tempo para remoer fotografias mentais do passado, uma infância feliz,
uma adolescência alegre, outras vidas. As pontas do tempo tocam-se: quando se
chega a velho olha-se com inveja para os lados fugidos da infância. Não procuro
consolo, ou respostas, tenho simplesmente medo de morrer, não queria, mas finjo
que sou forte. Por isso procuro a infância: à custa de tanto a querer pode
operar-se um milagre, e que volte para ela, de onde nunca deveria ter saído.
Foi nesse tipo de coisas circulares que pensei.
Estaciono o carro e espero que a chuva de tiros passe a regime
de aguaceiros. Pode parecer artificial dizer assim, mas vai chegar a isso, ao
espaçamento das rajadas das metralhadoras, que sendo armas e letais mesmo assim
não estão sempre a matar, também intervalam.
Passados largos minutos em que fumo cigarros encadeados sem necessidade
de me proteger, por alheamento, descubro um par de olhos vivos na frincha do
posto de controlo.
Deixam-se passar mais minutos até que os olhos se fazem ver
acompanhados de um corpo inteiro. Dirige-se a mim.
-Bom dia.
-Bom dia.
-Estamos numa zona de guerra, é perigoso estar aqui.
-Venho buscar os meus pais, vivem naquela casa amarela.
-Não pode passar.
-Porquê?
-Porque não o podemos deixar ir sozinho e já não nos podemos
envolver no conflito. Isto agora é um país soberano.
-Vou na mesma.
-O senhor está armado?
-Estou.
-Sendo assim, pode ir, está por sua conta, mas pode morrer.
-Obrigado.
-Continuação de um bom dia.
-Para si e para os seus.
O soldado provavelmente deprimido que me abordou desapareceu
engolido pela gruta onde se protegia como podia.
Percorro sem noção de medo a distância curta. Chego à porta de
casa sem ter tempo de absorver a ideia dos riscos que corri.
Bato. Insisto. Silêncio.
Um homem que desconheço, ou já não lembro, entreabre a porta
familiar. Por ele ser preto e os meus pais brancos, conclui ser um criado, ou alguém
que usurpou sem pedir autorização, o local onde me fiz homem. Não foi um
pensamento racista, foi uma evidência.
O homem olhou-me humildemente assustado, os terroristas não olham
assustados para ninguém.
- Bom dia.
- Bom dia, senhor.
-O senhor Paulo está? Pode chamá-lo, por favor?
-O senhor agora não pode comparecer, está a ver se foge.
-Eu sou o filho do senhor Paulo.
-Só um momento, que vou ver.
Há três anos que não sabia deles. Primeiro tinham voltado para a
metrópole, e eu naquela altura estava nos confins de um deserto, sem vista de
gente nem seres de espécie nenhuma, a ganhar a vida na extração dos diamantes.
Estranha forma essa, dizer que se ganha a vida, quando na realidade sempre a
perdemos.
Vim a saber pelo meu irmão que eles, contra os conselhos da
família, padeceram dos males da saudade e tinha voltado para a sua casa de sempre.
Não os podemos culpar. Que sentido tem fugir do local da nossa maior
cumplicidade, o sítio que nos conhece o nome e nós os seus segredos íntimos?
Que sentido faz fugir para um lugar desconhecido, onde não se
conhece ninguém, em que ninguém nos conhece. Para começar uma nova vida? Eles não
queriam uma vida nova, só queriam a sua.
Ali, de frente para uma porta, por onde podia ter entrado de
rompante, mas não o fiz, não sei porquê, emocionei-me. Emocionei-me mas contive
as lágrimas porque sou um homem feito que nunca chorou.
Ele apareceu, mais velho, frágil, era o meu pai e apesar de
estar muito mais abatido e velho, senti uma proteção antiga que já tinha
esquecido. Soube tão bem.
- Acabo de abortar os meus planos de fuga. Dá cá um abraço meu
filho.
Entrámos os dois, uma vez mais, na nossa casa de família. A
porta fechou-se com convicção. Só se pode viver assim.
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