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UM CERTO LITORAL ALENTEJANO, NOVELA FOTOGRÁFICA




Mesmo que seja de passagem é deselegante não deambular pelas ruas da vila. São Teotónio diz que tem a maior comunidade emigrante romena do país: essa mania de se inventar a pretexto de uma minudência alguma coisa que seja a maior e melhor, e ninguém tenha igual ou parecido, é coisa nossa.
                   

                        


Como era o que havia mais à mão, São Teotónio, lançou esse boato cá para fora, e pegou. Nas três vezes que lá fui no espaço de uma semana, não me cruzei com nenhum(romeno), mas também é verdade que não os distingo dos portugueses, havendo uma alta probabilidade de que misturados, não seja fácil identificá-los. 


Quanto à "barreira" do idioma e com quem se falou, assegura-se que a comunicação foi feita num genuíno alentejanar da palavra, e sobre o sotaque o mesmo. Pode dar-se o caso que eles há tanto tempo emigrados falem correctamente esta nuance do português do Sul.

A Praça principal, que pode não o ser mas é onde se encontra a igreja-matriz, é acanhada. O casario circundante não ultrapassa o primeiro andar, e não sendo arejada, abre-se aos céus. Em dias desanuviados, a intensidade do azul celeste parece que nos chove em cima, mas não, só  encadeia a visão, de tão intenso o azul. É nestes fenómenos naturais que um homem sente uma dor no peito, de tanta beleza.




A igreja é humilde, sem remates nem pirosices barrocas, está caiada de branco com os recortes a azul. Tem um relógio na torre, e abaixo o sino, os números a preto em contraste com a parede. Não se confirmou que desse horas (deliciosa a utilização do verbo Dar). Pode ser um relógio decorativo ou temporariamente fora de serviço.

A Praça também tem uma pastelaria, apinhada aquela hora da tarde – seriam umas quatro. Comeram-se uns deliciosos bolinhos de amêndoa: uma melancia e um pêssego. A empregada foi honesta e afiançou que estavam frescos. Tinha razão, considerou-se por isso e porque também sorriu bonito, que era da simpatia alentejana, característica difícil de explicar e só intuída.





No flanar pela vila de ruas estreitas que dão sombra às casas e aos passantes, desaguou-se numa sapataria, em dobrando a drogaria da esquina. Nestas terras as lojas têm de tudo, cada uma é um centro comercial.





Dá-se o nome de sapataria a este estabelecimento comercial porque o objecto que se viu mais exposto são sapatos, apesar de desirmanados. À primeira vista podia ser uma loja especializada em calçado para mancos de pernas: só o sapato direito, ou o esquerdo. Mas não, é uma loja ortopédica, não há pares, é mesmo assim.




Mal entrámos, temeu-se que o local tivesse sido fustigado por algum micro fenómeno ambiental, um terremoto, um tufão. Era um cenário de caos: caixas pelo chão, prateleiras cheias a acumular coisas esquecidas há mais de muitos anos, atacadores soltos que pareciam lombrigas, fivelas soltas que careciam de serem cintos, ferramentas ao deus dará…





Pediu-se, à cautela, para ver e experimentar o nº 42 de umas botas - a que tinha o aspecto mais saudável daquela loja, e estava delicadamente exposta no balcão. 

O sapateiro amuou por se ver obrigado a alterar a posição de sentado, e de propósito, ao fim de meia hora de uma procura alentejana lenta, é peremptório entredentes que o número maior que teve foi o 41, e isto há muito tempo. O possível cliente contrapõem que uns amigos seus, residentes na zona, lhe enviaram uma vez um par de botas nº 42. 

O ambiente começa a ficar tenso.







Para não se atingir o eminente ponto de zanga fez-se diplomacia, ele fechou momentaneamente a sapataria improvável e fez-se uma procissão com os litigantes para beber um sininho de medronho em local que se anuncia com fotografia.

É assim que se assinam tratados de paz, brindando. É um procedimento elementar e humano e não necessita de doutoramentos.




É um dois em um, e explica-se: o sapateiro é amigo do talhante que entretanto também é florista. Quando vazios de clientela, mantêm-se em repouso - mas alerta - na exuberância tropical e florida da "Pétala", acudindo ora a esta ora ao talho, consoante o produto que se procure.

Na metade que faz de talho, tudo limpíssimo, higienizado, como é de lei numa moderna morgue de animais. No balcão frigorífico onde refresca a fuça do porco, e outras iguarias todas suínas, guarda-se uma garrafa de medronho - fresquinho - para os amigos, que são todos os conhecidos, ou quem lhe entra pela porta uma primeira vez. Para todos portanto.

Não se sabe se o comportamento do talhante se altera com uma cliente do género feminino, supõem-se que a esta ele não ofereça um cálice de aguardente, talvez uma flor.

Gerou-se ali uma amizade com futuro, das que prometem serem boas. Depois de uns quantos sininhos, difíceis de contar à velocidade com que estavam sempre cheios, conclui-se que o sapateiro não é um homem carrancudo, gosta é de estar sentado e chateia-se quando o obrigam a vender. Do talhante só se pode dizer bem, é um homem encantador, um contador de episódios que estica ao sabor da audiência. Vendeu-nos partes do porco que não sabíamos existirem, nomes de coisas de comer saborosas e carregadas de gordura.

Numa tarde conheceu-se quase metade do tecido empresarial da região!



Ao fim do dia, no caminho de regresso à Zambujeira do Mar, uma terra avarandada sobre o mar que compete em vaidade com Milfontes e Porto Covo (compete mas sem invejas, cada uma no seu estilo), encontrámos na estrada dois velhos ainda apaixonados, sentados ao fresco no sofá da sala, entretidos a verem os carros a passar a toda a brida. Não há melhor vida que esta, do campo, junto à praia.













Se durante o dia o azul do céu do Alentejo não tem um adjectivo à altura, à noite são as estrelas no seu pisca-pisca, milhões de milhões, que transformam o telão escuro que nos cobre numa discoteca de luzes. É um espectáculo de pirotecnia fina, feito com a mais elaborada engenharia celestial, altamente especializada neste e outros fenómenos.







 À janela dos meus olhos com o novo dia parido, alumbrei-me demais, e debrucei-me nesta paisagem irreal do porto de pesca da Zambujeira do Mar.









De bicicleta, pelo caminho ainda deserto tomei-me de amores por dois rafeiros alentejanos, abentesmas, enormes, com um chocalho ao pescoçoal a fazerem-se cordeirinhos. Ficaram de meus amigos, companheiros no passeio, sempre ao som do chocalho.

Como eles estavam livres e danados que são para atazanarem o espírito dos seus iguais, lançavam-se num berreiro de ladroar por cada casa que passavam, onde os pobres tristes dos cães acorrentados, respondiam raivosos de não estarem no seu lugar. Lançada a inveja, voltavam para a estrada, todos contentes, caudas peludas a abanar e aos pinotes contra o ciclista, na brincadeira claro!








Por cá as praias têm uma sensualidade rebelde, dão luta nos jogos de conquista, mas quando o intruso se torna merecedor, estendem os areais banhados pelo mar frio e revigorante, e deixam-se namorar.

São tão puras que deveriam continuar num segredo pouco sussurrado. Nomear é divulgar, pelo que se aconselha veementemente não procurar nos mapas os caminhos que desembocam em Almograve, na Zambujeira, no Carvalhal, em Odeceixe (a aldeia é um presépio),o Monte Clérigos, a Arrifana.





E é da Arrifana que escrevo esta novela, no terraço de uma casa que imagino minha – não vou mais longe -, estando do lado da rua a olhar para ela, sonhando.

No terraço, onde pus uma mesa de madeira corrida e nada mais faço senão deixar escorrer o dia olhando o mar e escrevendo, uma devassa de uma gaivota-pata que me anda a atazanar o espírito desde que cheguei, está a fazer-se ao meu almocinho de peixes frescos de amêndoa algarvia! Parece o cherne-gold com os patos bravos que somos nós!







Amanhã continua-se esta conversa.



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