Não sei, mas devo viver no purgatório, pensei que tinha outro
nome. Se não é o purgatório é o mais parecido na terra duma morada no além.
Como cheguei a esta conclusão bizarra?
Os vizinhos de cima passam o dia a ouvir missa (é bem possível
que seja um sistema que funciona em “loop”), ouvem-na eles e todos os outros
vizinhos mesmo sem nos terem perguntado se queremos. Fica-se a saber que as
colunas de som são de qualidade.
Porque repetem tantas vezes esta ladaínha se a sabem de cor, há
anos a praticarem, podendo perfeitamente dizê-la silenciosamente para dentro sem
obrigarem os vizinhos a fazerem o papel de figurantes obrigados? Até porque se
sabe que Deus aprecia mais a intimidade de um suspiro interior, uma
introspecção comedida que os berreiros das feiras.
Deus é o primeiro a respeitar a intimidade de cada um.
Portanto no alto de nós, no andar superior, na colocação devida,
temos o Céu.
Olhando para baixo:
A vizinha do nível inferior ao nosso, passa o dia a guinchar de
prazeres que se supõem carnais, tão intensos (os urros) que num perímetro
alargado nas redondezas, secam toda a vontade de imitação. Ouvi-la, só isso,
mirra e afasta todos os apetites picantes da cabeça.
É pois o Inferno, posicionado devidamente no baixio que lhe
compete, rasteiro e enxofrado.
Pensando nós que estávamos a ter uma vida normal, sem grandes
sobressaltos existenciais, nem necessidades de suplementos espirituais (somos
naturalmente felizes assim, sem termos que pensar muito sobre questões que
provocam enxaquecas), e somos apanhados nesta contenda eterna dos deuses e dos
demónios, que não se resolvem, e dão um péssimo exemplo como seres desavindos,
que não discutem civilizadamente as suas diferenças.
A minha família e eu estamos ensanduichados, entre a terra e o
céu, num rés-do-chão sem pontos de fuga, incapazes de atingir a purificação
pela santificação da oração, porque não temos jeito para orar, diminuídos do
gozo pleno da luxúria, porque já não temos idade para isso. Estamos entremeados
no pior dos mundos.
Nem anjos nem demónios, simples mortais que despertam todos os
dias às sete horas da manhã com o acumular nas pálpebras das noites mal
dormidas.
Os anjos fazem todos os dias serão, os demónios passam a noite a
atiçar os fogos. Nós, prisioneiros da nossa normalidade, castigados por uns e
outros, num banho-maria, à espera de ascender aos céus, ou baixar
definitivamente aos infernos.
O purgatório é a pior das moradas. Há dias em que confundimos o
som de um cântico gregoriano com os guinchos de belzebu a ser sodomizado, ou a
sodomizar. E é viver assim que não é saudável, na dúvida entre o Bem e o Mal,
sem saber qual é o Bem e qual é o Mal. Se é para cima, se é para baixo.
Nesta inquietação de viver no purgatório, fui investigar.
Dirigi-me ao céu, bati à porta, uma porta aparentemente como
todas as outras, e atendeu-me um senhor idoso, de roupão com nuvenzinhas azuis
estampadas. Não tinha barba, não deve ser Deus.
O senhor teve muita dificuldade em compreender as minhas
palavras. Perguntei-lhe se era ali o paraíso, porque é que passam o tempo todo
com cânticos e orações, enfim, coloquei-lhe todas as questões metafísicas que
pude e me lembrei no momento.
Ele acabou por me dizer que estava reformado da Carris, há dez
anos, reforma curta, a mulher nem reforma tinha, e que passavam o dia em casa,
a ouvir missa pela radio, o seu alimento espiritual e a preparação do caminho
para a última morada que se aproxima. Para além disso eram surdos, entre outras
maleitas próprias da idade.
Não era ali o céu!
Despedi-me acabrunhado e como estava nas escadas, aproveitei
para descer aos infernos.
Do lado de cá da porta o ruído que vinha do lado de lá era
significativo. Gritaria, batucadas, não há dúvida que seria a morada do demo.
Insisti bastante até ser atendido. Abriu-me a porta uma morena
espampanante num roupão fino, semi-aberto, de uma grande sensualidade. Seria
certamente uma odalisca ao serviço do cornudo.
Perguntei se estava no inferno, ela olhou-me atónita primeiro, e
de seguida ofereceu-me uma risada tão genuína que desarmou a seriedade que
tinha posto na pergunta, ri-me também, e desculpei-me pelo equívoco deixando-a
muito provavelmente a pensar que deveria ser doido, para lhe bater à porta com
uma pergunta destas.
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