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MIRADESES TEM UM RIO










Formoso. Nasce no estrangeiro – galego - e desagua no Tuela, quando passa na aldeia faz-se de grande, rio crescido, alarga a distância entre as duas margens. Nesse ponto não tem fundura, não ultrapassa a linha dos joelhos de um adulto, não dá para natações, nem exercícios de estilos. No verão os utentes ficam deitados, ancorados ao chão arenoso, nessa doce modorra põem a escrita da vida em dia, olhos alapardados no céu azul.
As margens que desenham os contornos dos rios são duas vizinhas rivais. Aqui, uma aloja o casario granítico, ou inacabado, a outra, oliveiras e campo de pasto das ovelhas, que por lá se avistam, guardadas pelos mastodônticos cães de gado transmontano, cães imensos, com feições e corpanzil de se darem ao respeito, todavia, subornáveis por uma boa carícia, como qualquer dos mortais.
Uma placa numa pedra em imitação de menhir, anuncia-a como a “Terra dos Engomadinhos”. Pode ser, não se viu nenhum, nem descobriu a origem dessa nomeação.







Miradeses tem um dólmen com uma caixa de correio verde emoldurada. Como está plantado ao lado da pequena e estreita escadaria que conduz à acanhada mas bela igrejinha, o turista crédulo de toda a novidade, na primeira passagem pelo local, julgou estar a ver arqueologia. Está bem feito, mas não: é uma cenografia. Em vez de se pendurar uma caixa de correio nos sítios em que todas são penduradas, criou-se um “ambiente” só para ela.Vivem artistas em Miradeses.

Em subindo, de quem vem de Valpaços e já atravessou a ponte sobre o rio; viu o dólmen e a casa do Senhor; mais acima, isolado mas a olhar para a serra de Santa Comba, um cristo crucificado dentro de um casinhoto branco com portas de grades de ferro verdes; amendoeiras floridas a salpicarem a paisagem, neste inverno armado em verão um pouco mais fresco; chega-se à terra de Vale Salgueiro, onde se produz o melhor vinho da região, quiçá de todo o senhorio transmontano: Quinta das Corriças.




No casinhoto onde está cristo “sequestrado”, uma sombra de contornos humanos imprime os degraus quando o visitante sobe as escadas. Pensou-se logo em milagre, no corpo um arrepio misto de temor e rejúbilo. Mas não, é só a sombra do transeunte que desse alto avista a serra de Santa Comba. São uns trinta quilómetros pela estrada, fossem eles aves voadoras e era um bater de asa. O viajante, dada a inerência a que não pode renunciar da função que o reveste - salta-pocinhas, andarilho - transfere agora a história para contar a subida aventureira e corajosa desta serra de 1041 metros de altitude, quase totalmente despida de arvoredo (antes caminhando pelos trilhos não se avistava o santuário de tanto e cerrado que era), derrotado na eterna guerra perdida dos incêndios florestais.
O grupo estava bem equipado, e pôs os pés ao caminho, uma subida que nunca é ingreme.







Ventava, chuvava, Só podia ser um deus, no cimo do monte, com fôlego para soprar tão fortes vendavais. Um deus pagão, cultor de rituais anímicos, de crenças primitivas, adorações com sacrifícios, às forças da terra, do fogo, da água e do ar.

Todas elas queriam impedir o grupo de chegar ao cume, travou-se a eterna batalha dos homens contra os deuses. Estes, uma vez mais perderam, e amuaram até ao final do dia, deixando aos homens o gozo e usufruto das vistas do miradouro, onde se lobrigam outras serranias igualmente imponentes, mas só nesta vive numa fraga a santa Comba, e a história do seu milagre.

Era de uma beleza rara e apascentava os seus rebanhos despreocupadamente, coisa que uma mulher com atributos, nunca deve fazer. Em passando de regresso de uma caçada a um urso que importunava as aldeias e já tinha comido umas quantas criancinhas, o rei mouro, homem membrado, feio, com orelha de asno e outra de cão (relatos de época), apaixonou-se perdidamente pela virgem pastorinha.

Esta, muito assediada pelo quase mostrengo berbere, refugia-se cada vez mais na dedicação e práticas a deus. Entrega-se e dá-se em todo o seu ser ao Senhor. Ferido no orgulho de não ser o eleito do seu coração, o mouro acatingado persegue a moça, de lança em riste, penedio acima: sendo membrado, corre lesto.
Encurralada, a donzela implora a clemência de deus, este que nunca diz não a um aflito, ordena que se abra uma fraga, recolhe a pastorinha, encerra-a dentro do calhau gigante, numa manifestação do poder divino, que tudo pode.

No passeio até ao alto não se viu a pastora nem o rei aziago, que se teriam cumprimentado como se nada fosse.

Mas foi um passeio inqualificável - pepitas de felicidade -daquelas pequenas e irrelevantes coisas que pagam as arrelias que carregam os dias em geral.

Findou-se o dia com um salto a Murça. O pretexto era ver a sua escultura celta que representa um javali, um urso, uma porca, o que seja, que é bem de ver. Mas esse era o pretexto, que o objectivo era satisfazer o pecado da gula com um “Toucinho do céu”, doçaria conventual típica da terra.

À noite houve alheira, vinho, pão de centeio e galhofa farta com acompanhamento em som de fundo, do crepitar do azinho consumindo-se numa lareira em que cabia um cabrito.

Com um novo dia tira-se à sorte outro ponto cardeal, calha noroeste. Ala que se vai para Chaves, onde haverá muito para contar, mas primeiro tem que se pôr a conversa actualizada com os romanos, os suevos e os mouros, vizinhos que ergueram a cidade, num Trás-os-montes mais suave, com aragens da Galiza que lhe bate à porta.







Comentários

  1. "os Engomadinhos" tem uma razão de existir, esta designação !! Em tempos, Miradezes(assim se escreve em terminologia correcta e original) era e continua a ser uma aldeia à beira rio, rio esse de águas límpidas e sempre com um imenso caudal, mesmo no Verão !! Os seus habitantes - de maioria com profissões agrícolas, artesãos, moleiros e barqueiros e taberneiros - suavam com seu trabalho maioritariamente árduo, e por facilidade(em inglês turístico se diz facillity) tomavam frequentemente banho neste rio.
    Acresce ainda dizer que na consequência natural desta situação propícia, se lavava a roupa (incluindo lençóis, cortinados, etc..) e todos os utensílios de trabalho possíveis e imaginários ... Ainda como consequência, havia o estímulo e a tentação irresistível de secar ao sol e Engomar todas as roupas muito bem, antes de serem arrumadas e depois vestidas. Sempre que um Miradezense se apresentava em qualquer festa ou romaria, na sua própria aldeia ou aldeias próximas, era visto de forma diferente dos restantes: aparecia mais limpo, fatos bem lavados e com um toque de Excelência tipo a "cereja em cima do bolo" - é que os Miradezenses estavam sempre com tudo muito bem engomado, as calças, a camisa, o blazer( ou jaqueta, ou simplesmente casaco) e até mesmo as meias e a roupa mais íntima ... Este facto de certa forma irritava os Restantes, que se viam impedidos de "competir" com eles, no que toca por exemplo em galantear uma bela donzela. Mas o mesmo efeito tiveram as Miradezenses, que além de bonitas, sempre apareciam lindamente e lustrosamente vestidas.
    Ainda hoje existe este velho hábito, que hoje é visto como uma espécie de tradição, um autêntico orgulho destes aldeãos !! Eles nunca aparecem em lado algum, fora do seu horário de trabalho árduo, que não seja muito bem lavados, vestidos e engomados. E este fenómeno é extensível à apresentação de todos os seus veículos motorizados, acessórios e instrumentos utilizados.
    Quero agradecer-lhe todo o seu entusiasmo empregue ao escrever sobre Miradezes e sobre alguns "Engomadinhos" que encontrou no seu percurso.
    Tenho curiosidade em saber se encontrou Miradezes por acaso ou por recomendação.
    Mesmo assim lhe garanto, algo está a ser feito para dar a conhecer esta Terra, tem de facto dos melhores vinhos do Mundo - não só os de rótulo conhecido, mas também alguns que misteriosamente apresentam sabores irresistíveis(baseados em castas utilizadas nestas terras pelo menos desde a Idade Média ou Renascimento).
    Ainda lhe garanto, muito pode ser feito para Bem Aproveitar o potencial desta região !!
    Saudações de Mário Araújo.

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