A cidade bule, impiedosa
como todas as urbes, não por maldade própria, mas pela inerência normal da
imensidão de pessoas difusas, cada um nos seus afazeres do dia.
Numa intersecção de vias rodoviárias,
ruas movimentadas, pontes de circulação pedonal, viadutos por cima e por
baixo, existe uma aldeia de casas de cartão e materiais efémeros.
Não se sabe se esta aldeia
tem um nome, deveria ter. A toponímia legaliza a geografia.
Nessa aldeia de papel,
vivem pessoas, como em todas as aldeias.
Habitada por seres
primitivos – palavra difícil de entender e de mal entendidos – no entanto
humanos.
Os cidadãos atarefados da
urbe, fingem que não os veem: envergonham o seu olhar.
Outros e muitos, desprezam
a insistência de um copo preso numa mão estendida.
Os seres deste aglomerado em cartolina, quase primevos,
ainda assim humanos, vieram de terras desconhecidas, mal afamadas pelo
desconhecimento.
Não se imagina como
conseguiram chegar - nem se perde tempo com isso- comendo as distâncias na fome de a saciar.
Aqui não encontram
alimento.
Que sonhos se sonharão
numa noite ruidosa sob o tecto de um viaduto?
Que sonhos existem num
mísero copo de plástico que tremelica numa mão constantemente estendida,
agastada pelo desconforto muscular?
Os sonhos mirram com a
humidade que desfaz as paredes de papel, porque não medram sonhos com frio nos ossos, com fomes acumuladas,
na impiedosa omissão de serem gente.
Não há homem mais corajoso
do que aquele que se põe a caminho na busca de poder vir a ser um homem.
Será escorraçado, vilipendiado,
violentado, omitido, cuspido, escandalosamente escarrado.
Emigrante definitivo,
preenche na busca do pão a verdade da essência de se poder dizer homem.
A cidade bule impiedosa
contando os segundos para chegar a horas ao trabalho.
Seguem-se os dias e as
noites,e as paredes de cartão são
constantemente reconstruídas no lixo de uma cidade distraída, algures num viaduto qualquer.
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