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A bandeira degolada



Dizemo-nos com símbolos: as palavras são, a iconografia é, pessoas que simbolizam conceitos vivos para o colectivo, expressões de identificação e entendimento, plasmam a identidade da tribo.


Todos estes símbolos são os veículos e meios de expressão pelos quais, munidos de uma liberdade total, comunicamos com o mundo. São os códigos que dispomos para nos entendermos, desentendermos, coexistir, de preferência harmoniosamente, em sociedade.

Não nos exprimimos  sem liberdade de expressão, o que não quer dizer que não possamos – que podemos  mas a decência não devia deixar - veícular as nossas ideias usando uma qualquer estapafúrdia ou violentadora forma de dizer, rebaixando o outro com  golpes de violência verbal, gestual ou mesmo física.

Se usarmos esses subterfúgios de jogador de Poker somos menos livres porque aprisionamos os incautos nas armadilhas do nosso suposto poder. E não há pior poder que negar a palavra do outro.

Os homens necessitam de símbolos para a sua fotossíntese. Mas atenção, os símbolos são nutrientes  da identidade, não são a identidade.



A bandeira da tribo não é a nossa alma. É a significação de uma ideia comum que partilhamos, assim como a canção que nos faz pele de galinha, assim como os heróis que nos estravazam de orgulho, assim como os representantes da soberania do clã, pela inerência da sua relevância devem ser o exemplo maior de uma impressão digital comum.

É muito perigoso quando alguém limita a utilização dos símbolos por decreto.

A ideia de dar a vida pela Pátria, com a bandeira a fazer de xaile, a mão a arrepanhar o peito e o símbolo do líder na lapela, seja ele qual for, é uma ideia que acaba invariavelmente em tragédia.

Se nos apetecer mandar o presidente da “Junta” ao cócó podemos e devemos fazê-lo, porque se o fazemos é porque realmente temos razões para isso.

Ninguém ofende por prazer – a menos que em patologia - , só em desespero.

Outra questão é o “cócó” ser decretado crime à honorabilidade e bom nome (?) de um alto representante do Estado, e se vamos por aí então dá a parecer que o retrocesso da liberdade de expressão começa a estar ao nível de um lápis azul, agora azul invisível, não menos perverso que o anterior.


Não me chocaria utilizar uma bandeira para chocalhar uma consciência, enoja-me muito mais utilizarem uma bandeira à lapela com apontamentos de caspa a sobressair do azul regimental dos fatos à medida e nem se lembrarem de sacudir a caspa... desse símbolo nacional.

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