Àquela hora, todos os
indícios prometem uma boa manhã: o papagaio do vizinho já se debate com
questões linguísticas, as gaivotas estão histéricas, o sol ainda mal abriu os
olhos e os seus raios varrem horizontalmente os objectos e os seres, vestindo-os
de contraluz.
Vai se aperaltar um grande
dia de verão!
O vento recolhido no lar,
deixa o ar abafado e quente ,
Jacinto acordou nesta
algazarra sensorial, mas permaneceu, tomando-se com vagar senhor dos
automatismos vitais - agora sob o seu controlo - protegido pelos lençóis de
fina cambraia.
Aguarda pelo noticiário
das seis na Antena 1, espera que a voz da rádio o ponha ao corrente do pulsar,
ou estertor, do mundo.
Uma canção de combate, das
antigas e boas, aviva resíduos dos tempos em que ainda existiam ideologias e
causas, tem um arrepio momentâneo de nostalgia pé de galinha e enterra a cabeça
grisalha, na almofada ortopédica.
Espera-o um longo dia de
trabalho, como comentador de assuntos vãos, opinador do inverosímil.
Na pequena fábrica que
construiu num anexo sem vistoria, fabrica um produto fino: entendimentos do
mundo com assinatura.
Para tal efabulou primeiro
e logo concretizou uma linha de montagem, que se passa a explicar.
A plataforma número um, consta
de uma caixa em alumínio anodizado por onde entram através de uns filtros -
cuja patente não revela – os sons, as imagens e todas as palavras escritas e
ditas que consegue aprisionar.
Tarefa sobre-humana,
portanto humana, que é no impossível que nos pomos em bicos de pés!
Tudo o que anda por aí a
flautear no éter, é absorvido e captado.
Por um processo elaborado de
autodidatismo científico, as fontes são separadas e encaminhadas
individualmente via um tapete rolante de alta sensibilidade, para um alambique
em cobre.
No seu interior, uma
lavagem alquímica e muito esotérica, expurga o bem do mal.
Dada a preocupação
ecológica do criador, os resíduos tóxicos são reciclados e transformados em
energia voltaíca ( para alimentar a fábrica e o plasma que se mencionará a
seguir).
O caldo, agora purificado,
entra num tambor simpático, para secagem e desidratação, que vai expelir para
outro tapete de alta sensibilidade, mensagens limpas e escorreitas.
O ajudante do Jacinto,
igualmente reformado (o nosso empresário só dá trabalho a seres disfuncionais),
munido de luvas cirúrgicas para não ser contaminado, separa algumas porcarias
que ainda restam, enquanto vê o canal Benfica
num plasma pendurado do tecto ( o patrão quer dar boas condições ao empregado,
e este na distração, está-se mesmo a ver que separa as porcarias!).
Os resíduos serão
posteriormente transformados em ração para as gaivotas. Fica explicado o seu
comportamento histérico e necrófilo.
Plataforma número dois: acondicionamento
e acabamentos finais.
O segundo tapete desemboca
numa esplêndida secretária de mogno, com três áreas distintas: um tabuleiro em
imitação de pele de foca do ártico, do IKEA,
o Jacinto de corpo e alma, e um computador
Apple com ligação à Internet.
As ainda não notícias, às
postas, caiem no tabuleiro, o Jacinto dá-as a conhecer umas às outras, achega-as
– casamenteiro empedernido – casa-as com bênção e ordens de marcha. No passo
que se segue são comprimidas num ralador sofisticado que vai originar
(maravilhas da informática!), um texto escorreito no mais belo e perfeito “Word”, última versão.
Concluiu-se o ciclo. Após
esta fase, Jacinto apõe vírgulas, pontos e demais sinalética ( o sistema apesar
de sofisticado ainda não chegou a esse detalhe)e envia o produto final, fresco e
são para uma lista exaustiva de periódicos e blogues onde colabora como
voluntário.
Esse é o momento do
criador: a obra nasce, o homem mirra. Fervilha no vazio da espera, o nervoso de
um reconhecimento.
O dia foi longo. O
papagaio do vizinho, já sem pruridos linguísticos, só diz asneiras, as p... das
gaivotas em overdose da tal ração,
fazem um berreiro ensurdecedor, o sol fechou a pestana e passou o turno à lua,
mulher fácil.
A Jacinto espera-o ainda o
pior dos trabalhos pela frente: de olhos pregados no ecrán do Mac, ausculta os shares.
Que jornais publicarão a sua opinião de cidadão? Quantos likes? E comentários, amigos e invejosos? E a estatística dos
blogues – no julgamento feito pelo seus pares?
Enquanto se fica nisto até
altas hora da noite, o ajudante cansado de tanta porcaria, apanhou uma terrível
cardina para esquecer a vida de miséria a limpar notícias conspurcadas – é
todos os dias assim – e está a estas horas a dormir, bronco e ébrio, embalado
pelos sons celestiais que fazem demasiado eco ( são os sons do
chocalhar da bebedeira, que ele julga serem as sinfonias dos anjos).
Amanhã, como todos os dias
na vida de reformado, ele vai pela ordem dos seguintes acontecimentos: tentar ser menos infeliz, beber, ver o canal Benfica e conseguir dormir.
Jacinto é um comentador de
assuntos vãos e leva muito a sério o seu trabalho.
Será que um dia lhe darão
coluna própria, com nome e fotografia e tudo?
Apesar da concorrência ele
merece, depois de tudo o que tem sofrido com a sua doença de reformado
disfuncional!
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