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Eram para aí uns quatro ou cinco

Àquela hora da manhã, engalfinhados nas filas de trânsito ignora-se tudo. Não se ignora, não se pensa. O ambiente mais ou menos sofisticado da viatura que nos transporta é a continuação em movimento, do casulo- cama. No pára-arranca, o carro escorre lentamente, ocupa nesgas, antecipa fugas para a direita, para a esquerda. A fila onde estamos é sempre a pior.

Vamos ser os primeiros a chegar, nem que seja por uma unha negra!

Às sete e meia da manhã, somos os reis da selva. As leoas conduzem com uma mão enquanto a outra segura o telemóvel, ajeita o rímel nas pestanas, acrescenta cor nos lábios. A multiplicidade impressionante de coisas que elas conseguem fazer ao mesmo tempo!

 Nós, que ficamos mareados só com duas tarefas duma vez, vociferamos e arreganhamos o dente ao condutor do lado. É feio! A irritação é tanta, que bloqueia o discernimento.

A elas nada afecta, impávidas, majestáticas. Lindas e absurdamente dominadoras! No prolongamento natural dos rituais de confrontação do belo com o toucador do quarto reflectidas no espelho da verdade, na quietude do quarto de vestir, terminam as tarefas essenciais da sua consagração existencial na fila do trânsito matinal.

 Se nos acontece a imperiosa necessidade de atender um telefonema importante, vindos da irrealidade, amarfanha-nos toda a Divisão de trânsito da PSP. Implacáveis.

 Elas têm tempo para contar à amiga com pormenor e detalhe o que se passou no interregno do dormir e os agentes são compassivos. Panhonhas com cacetete à ilharga.

Vá lá minha senhora, já sabe que não pode namorar ao telefone enquanto conduz. É perigoso! Hojé é só uma advertência, da próxima vez vou ter que lhe passar uma pequena multa.

Ai senhor guarda, o senhor é tão compreensivo. Eu nunca faço isto,  mas agora tive mesmo que atender. Sabe ,tenho um problema lá em casa.

Nos intervalos da batalha campal, quando os carros estão parados e não há mesmo nada para fazer, dá-se atenção ao noticiário. Fique o Mundo de pernas avessas e não sejamos notificados.

Às avessas estamos nós, na inquietude de estamos aqui e ali é que é bom.  

Nos intervalos dos blocos noticiosos, as estações de radio lançam piadas como gotas em chuveiro. Humor em bandejas do Ikea: barato e que agrada. Alguém pôs na cabeça desses miúdos de voz maviosa, que pela manhã, a caminho do emprego, as pessoas têm que chegar ao trabalho com o sorriso daquele amigo do Batman, muito mais interessante que ele, a esticar as peles até às orelhas.! Obrigatório estar bem-disposto. Uma ova!

 Entre o humor e rodriguinhos, ouve-se música duvidosa, sempre a mesma, repetição até apetecer bolsar.

Esta parte do dia é portanto bastante deprimente.

Num olhar de relance entre a concentração na defesa do território rodoviário, observou-se que eram para aí quatro ou cinco, encostados ao muro.

De costas, não pareciam muito movimentados, mais estátuas, se é correcto e dá a ideia.

Entre o muro onde estavam encostados, debruçados e o outro lado, passa um riacho, ou ribeiro, ou leito, ou seja lá como se chama a um fio de água que não consegue ser nada de jeito e a única coisa que anseia é chegar com tempo ao oceano, onde se une ao seu universo particular, resolvendo a  questão do destino final.

Do outro lado, luzia uma horta urbana, irrepreensível no que à organização de uma horta diz respeito, daí a utilização dessa palavra estranha que é “luzir”, advindo desse facto, a admiração estática dos indivíduos que a observavam atentamente.

O voyeur rodoviário que realizou esta vista de olhos displicente, tirou o instantâneo e vestiu-se imediatamente o blazer de macho Alfa, único momento no dia, epítome do atavismo.

Muito pouca ainda, a distância percorrida na sublimação da matéria, e tantos milhares de anos desde o primeiro dia em que se espantou pela primeira vez.  

Não deu para perceber se faziam comentários, porque estavam de costas.

O condutor não teve acuidade nem havia condições para os ouvir.

Na tentativa de riacho, circulavam patos num curso de água que há pouco tempo era uma cloaca imunda, o que quer dizer que os esgotos e outras poluições estão devidamente tratadas. Nem todo o dinheiro vai parar a bolsos descosidos.

As pessoas gostam de se desdizer no mal quando não vêm o bem. Mesmo nos subúrbios há beleza. Para os patos isso é indiferente, já que não têm filosofia.

Nasceu na ilha de S. Vicente, dizem que das mais bonitas do arquipélago. Ilha dos artistas, de sentimentos.

Gente pobre, em terra dura, despida, escaldante, de águas insalubres. Pedaço de terra no Atlântico das Áfricas, jangada num mar a perder de vista. Criar uma mandioca dá quase tantos trabalhos como fazer filho homem.Terra de pariduras difíceis, povo doce, das mornas, feitiços do corpo.

Veio à busca de trabalho para alimentar a família. Só se sai de casa pelo pão ou por estremecimentos de alma.

Não regressou.

Os filhos cresceram, sem vocação para estudos, vivem dos expedientes da pequena malandrice. Um dia, a sua história terá um desfecho previsível. Não se colocando questões morais, tal como os patos, nos jogos da rua.

Acabaram-se as grandes obras, todas as estradas foram feitas. Se há mais caminhos a inventar, só pontes por cima das aguas rectas perfeitas para o outro mundo.

Houvesse trabalho na construção e outros de pele clara e olhos azuis, fortes que nem animais de tracção, fugidos das misérias das suas terras, inóspitas, gélidas, tomariam facilmente o seu lugar, porque têm mais força e são mais jovens. E ele já se gastou de uma vida assim.

Tem uma reforma pequena, este País é generoso com quem nos visita e fica. É mesquinho para os de cá.

Podia deixar-se ficar na taberna, com a mini na mão, preferiu cuidar da  quinta, pedaço de terra de ninguém, abandonada, por ainda não se ter posto cimento com préstimo de negócio.

Nesta terra de acolhimento tudo medra e ao fim da jornada enche a panela, boca voraz e faminta.

Faça o acontecimento climatérico ou político que fizer, todos os dias, invariavelmente cedo, ali está ele, senhor do seu domínio, rei das couves e das batatas, da mandioca e dos tomates, soberano absoluto de um império banhado por uma tentativa de rio.

Os outros,  do outro lado da barricada, são para aí uns quatro ou cinco. Estando de costas não dá para perceber se são reformados, devem ser. Podiam estar entretidos como aquele aldeão moreno e ainda bonito. Preferem a palheta, dá menos trabalho e vai-se descarregando a bílis em palavras azedas, porque o que eles comentam, presume-se - não se ouve - é que nas suas terras , os produtos que dá o campo, são mais saborosos . Nos regos deste, a enxada não fez caminho, a batata doce não se planta ao lado das alfaces, que exigem muita água, mas que apodrece, por excesso, os tubérculos, menos exigentes.

Palpites para ocupar o tempo que leva ao almoço.

O condutor andou um pouco mais, os quatro ou cinco já estão fora do seu campo de visão. Olha para um anúncio enorme de lingerie feminina. Uma quase adolescente de linhas generosas, enorme, descomunal, entra-lhe pelos olhos dentro.

Aquele malandro, quer pôr-se à frente, nem sinal nem nada. Quem é que pensa que é, só porque tem um Mercedes!. Já vais ver, se julgas que eu não vou chegar primeiro que tu! Novo rico! 


O ilhéu ficou para trás. Aos outros,a posição de estarem constantemente debruçados, não é simpatico para as costas.

O condutor cumpre inconscientemente o caminho, nunca chegará em  primeiro mas faz desse desafio pessoal uma das mais grandiosas realizações da sua existência.


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